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Erínias, pintura de Adolphe Bouguereau. |
Estava paralisada pelo medo. Os olhos pareciam tatear a rua em
busca de algum rosto conhecido. As moradias escassamente gradeadas tinham por
sentinelas árvores centenárias com troncos retorcidos, gravemente atadas ao
chão por raízes que emergiam nodosas. Apesar da luz frouxa, notou dos muros o
desgaste sofrido pela ação do tempo, num lugar onde não havia pausa para
reparos.
Uma mulher acalenta o filho no colo, indiferente. Tem o olhar
gélido de quem denuncia que, por ali, forasteiros não são bem recebidos. Um
homem enxuga o rosto e arqueia o supercílio. Outro olha por sobre os ombros, taco
na mão, enquanto se move em direção a uma mesa de sinuca. Num pouco de tudo, a
noite guardava um indicativo de dúvida.
As vozes abafadas exasperam uma hostilidade inevidente. A
despeito disso, ela corre pela rua a gritar pelo nome da criança. A infante não
responde. Porventura não a escutava? Ninguém sequer parecia se importar com as
preocupações que lhe dissolviam os olhos em lágrimas correntes. A boca seca em
desespero, perguntava a si mesma, “Mas como ninguém pode tê-la visto? Como pode
ter sumido sem que ninguém a visse?”
Queria estar em casa. Havia algumas casas de pernoite para
viajantes exaustos. Porém, aflitos não conhecem repouso. Agonia e transtorno
por seus medos a tornavam ainda mais abatida. Estava entregue a um repositório
de maus presságios, pensamentos em turbilhão, desenfreados. O peito incontido
enchia-se de ar a reverberar pelo nome mágico, cálice onde descansavam emoções
matutinas.
Eis que a criança aparece confusa. A aparente calma deu lugar a
um choro copioso. “Mãe, me leva embora daqui! Quero ir para casa!” “O que lhe
fizeram?” Não soube responder à interpelação materna. Ou não compreendia a
extensão de tudo que lhe havia ocorrido...
A fúria abateu a face terna. Aquelas impressões femininas,
delicadas, cediam lugar a uma notação de ferocidade desoladora. Era possível
reconhecê-la nas meninas-serpente, as Três, geradas pelas gotas rubras da
vergonha de Urano no leito de Gaia. As vestais do abismo, diante das quais a
consciência se retrai à procura insubmissa por velar seus detratores. Um animal
acuado que pretende ferir se não lhe permitem um nobre refúgio.
Via acima, e após quatro casas de onde elas estavam, dois
cavalos descansavam mansamente sob a luz de uma candeia dourada dependurada num
mourão. Tomou a menina em seus braços e avançou na direção dos corcéis. Ao aproximar-se
deles pode ver que eram um negro e um azufrado. Colheu as rédeas do corcel
negro e se atirou em seu lombo. Subtraiu a lamparina e lha deu para a menina,
pousada à sua frente. “Tome! Segure-a!” – ordenou.
Golpeou o flanco do animal, dando início à partida. O cavalo
estocava o chão em galope com maestria. Tudo era escuridão. Não se podia ver todo
o curso do caminho, nem a paisagem às margens. Apenas cerca de um metro se
revelava em torno delas.
A determinação em rumar dali, a perspectiva em voltar para casa,
era o que se podia mesurar naquele instante. A matriarca ainda não podia
saber, não houve modo de ver o que se fazia impresso na base do bojo dourado
da lanterna. Em letras miúdas, cuidadosamente talhadas, havia um letreiro
no qual se podia ler “O décimo será sagrado”.
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