27 de setembro de 2014

Cora Coralina e a palmatória do tio Fidelcino.














Dia desses chegou até mim um exemplar de ‘O tesouro da casa velha’, uma obra póstuma na qual foram selecionados contos inéditos da escritora e poetisa Cora Coralina. Fiquei realmente encantada com a leveza das narrativas e, sobretudo, com a sensibilidade com que a autora retrata um Brasil pitoresco, cuja existência se já não se extinguiu, é tão remota quanto é considerada improducente segundo os parâmetros da mundanidade pós-moderna.

Diz Dalila Teles Vieira, na página 07:
Toda literatura, é sabido, transforma-se em história quando a faz presente, viva, repetindo-se para o leitor através de novas experiências de cada leitura, do fato estético de que fala Borges que é o ato de abrir e ler um livro. Cora propicia ao leitor esse momento mágico, a regressão, através da máquina do tempo da literatura, a um Brasil bucólico, provinciano, conservador e ainda tão desconhecido.

A autora resgata os pedaços da vida privada da sua própria família e comunidade ao narrar, com a excelência de uma contadora de estórias, aquilo que os livros didáticos se eximem de publicar. Traz à tona não só os fatos, como também um esteio de costumes e linguagem próprias à ambientação do fato narrado. O leitor se permite um estado de abismamento com que se vê ambientado a um universo pouco afeito ao cotidiano hodierno. 

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, a goiana Cora Coralina, muito conhecida por seus poemas, é uma contista eloquente. Exerce uma criticidade sutil e espirituosa, mas também é hábil em dissecar a própria alma e deixá-la exposta para condoer e emocionar quem a lê com razoável diligência. Embora tenha sido inserida no cenário literário brasileiro aos 76 anos de idade, fiquei feliz em saber que ela escrevia desde a mocidade.

Uma antiga referência trazida por Dalila T. Vieira na pág. 09, o Annuário Histórico e Geográphico e Descriptivo do Estado de Goiás, de 1910, tem registrado ipsis litteris :
Cora Coralina (Anna Lins dos Guimarães Peixoto) é um dos maiores talentos que possui Goyaz; é um temperamento de verdadeiro artista. Não cultiva o verso, mas conta na prosa animada tudo que o mundo tem de bom, numa linguagem fácil, harmoniosa, ao mesmo tempo elegante. É a maior escriptora do nosso Estado, apesar de não contar ainda 20 annos de edade.

De um tempo em que fazia-se poesia metrificada e rimada, ela não se irmanou às exigências. Permitiu à si mesma a graça da peculiaridade quanto ao modo de escrever, bastante apropriada à sua retórica. Deixa para estas gerações um legado atraente de informações, metáforas e emoções de todos os tipos. Partilharei algo de sua dimensão prosaica. 
  


 Contas de dividir e trinta e seis bolos.

Minha tia Laudemiria tinha se separado do marido por absoluta impossibilidade, divergência fundamental e biológica de vida em comum, apesar de adorar o marido. Este lhe destinara por mês trinta e quatro mil e setecentos réis de um montepio, aposentadoria ou o que seja. Com ela veio o seu filho de cinco anos. Procurou a casa do pai que vivia na Fazenda Paraíso.

Chegou ali um dia montada a cavalo no seu silhão de dona com o filho num piquirinho rosilho e manso bem arreadinho com todos os atavios: selote de primeira, badana, coxinilho, sobrecilha, três barrigueiras e rabichola. Dois homens de confiança tocavam os cargueiros com suas canastras e dobros.

Nós éramos meninas naquele tempo e ficamos encantadas com aquela tia de vida romântica, que mal conhecíamos de nome e invejamos desde logo o cavalinho do primo, muito manso, de crina caída, de passo macio e que tinha o nome maravilhoso de Peri.

Minha tia por esse tempo devia ter 32 anos. Era alta, fina de corpo, de feição simpática, inteligente, boa, de trato delicado e amável com todos. Tinha cabelos pretos penteados para trás em duas grossas tranças que alcançavam a barra da saia. Foi uma força nova que chegou na casa grande, cheia de gente velha carregada de achaques, queixas e desilusões.

Trazia na canastra sua máquina de costura e logo passou a cortar e coser para a gente do terreiro de Mossamedes, em tempo de festa. Passou logo a ajudar no governo da casa que era grande e movimentada.

Meu avô era nesse tempo um homem de recurso, com muito prestígio pessoal, social, político e econômico. Tinha seus correligionários, amigos e compadres, inúmeros agregados, protegidos e dependentes. Era grande caçador – tinha cachorrada de fôlego e trompa de caça com bocal de prata, rica, lavrada e muito mais de mil alqueires goianos de mato, cerrados, campos e rios e ribeirões com toda diversidade de caça de pêlo, de pena e de escama, e a Fazenda Paraíso não passava uma semana sem a graça insinuante dos hóspedes.

 Minha tia era solícita dona de casa. Tinha o dom da hospitalidade perfeita. Era diligente, ativa, espirituosa, cuidadosa e alegre. Além da casa que atendia com esmero, passou a tomar conta de um velho moinho tocado a água, que vivia quase ao abandono e parado. Uma construção rústica, erguida no meio do pomar, com janela em cima do rego d’água. Dentro era alvejado de uma poalha sutil e todo rescendente das corolas do pomar. Fazia sombra nessa construção primitiva, um abacateiro enorme sempre com frutos pendentes se esborrachando na caída e um velho e esgalhado jambeiro onde trilavam todos os beija-flores da terra e dobravam o canto inigualável os velhos sabiás de peito vermelho, nas longas tardes de outubro.

Era um recanto romântico e de poesia que tia Laudemiria transformou e fez funcionar e o trabalho ali, de vigilância e suprimento, era agradável, proveitoso e limpo.

Entrava o milho debulhado e abanado na almoeda, descia guaduado por uma canaleta móvel e caía pouco a pouco no furo das pedras redondas, que, girando em contrário, reduziam o grão a um pó muito fino que a própria rotação ia jogando numa caixa grande, quadrada, de tampa. Era ensacado e vendido ali mesmo ou levado em cargueiros para o mercado de Goiás.

Com a ocupação do moinho, com as costuras e com o governo da casa e mais a presença constante dos hóspedes que ali iam convalescer, tomar ares, caçar, pescar, passar temporadas e coisas, tudo isso, repetido de forma rotineira e mais, o tempo de moagem, o tempo das rosas e o tempo das colheitas se sucedendo em ciclos continuados e rotineiros, os anos se passaram sem sentir e meu primo Zezinho cresceu sem aprender nada que aproveitasse.

A escola ficava longe, minha tia não tinha coragem – sozinha com o filho – enfrentar a vida na cidade com aluguel de casa e manutenção. Tampouco, sentia ânimo de mandar o filho para o internato do seminário, passivamente. Foi ficando pela roça e adiando providências com relação ao filho para o ano que vem. Com o crescimento e a liberdade do meio, sem disciplina da escola, o Zezinho ia aprendendo todas as malinesas dos meninos com quem brincava e cada dia se tornava mais brutinho. Montava em pêlo e saía disparado pelos campos com risco de se arrebentar. Subia pelas árvores mais altas, se mostrava acima das copas e escorregava gaiteiro pelas galhas. Sumia pelos ribeirões com anzol e cumbuco de iscas e voltava quando bem queria, isso quando não ia tomar banho e nadar no grande açude que servia a casa. Lugar perigoso que deixava minha tia apavorada e onde, há tempos, tinham se afogado dois meninos peraltas.

Foi o tempo que ela se decidiu ir às falas com o tio Fidelcino, mais conhecido por seu Tito, irmão de meu avô e que morava no terreiro da fazenda, numa casinha separada. Esse tio era um homem de cinquenta e cinco anos, neurastênico, nervoso, governado pelas luas – diziam -, de raiva fácil, de manias constantes e permanentemente amuado. Tinha sofrido na sua vida uma série de revezes e fracassos e seu espírito rebelado nunca se reabilitou dessas decepções.

Era, no entanto, de rara habilidade para fazer coisas sem aprender e de notável intuição para toda espécie de mecanismo, embora, rudimentares como impunha o atraso do meio e do tempo. Homem de notáveis conhecimentos. Sabia gramática, francês, latim, retórica e tinha rudimento de leis da física. Estudara juntamente com outro irmão, no distante e afamado Seminário do Caraça de onde saiu sem completar o curso, com uma doença grave nos olhos. Foi se tratar na Corte. Ficou cego de uma vista e não quis terminar o estudo. Chegou a ficar meio perturbado quando se deu o desastre com o mano Antônio, seu companheiro do Caraça e que ali fizera curso brilhante e mais brilhante concurso em concorrência com a fina flor da inteligência e cultura de vários Estados, tirando o primeiro lugar, recusando alta colocação no Rio de Janeiro, afirmando que estudara e fizera aquela prova não só para brilhar e sim para servir Goiás, sua terra, e que voltaria para sua cidade onde aguardaria mercê de Justiça.

O tio Fidelcino vinha da Paraíso para Goiás e o mano Antônio combinou que o acompanharia até o alto da Boa Vista onde caçaria umas perdizes. Tomou sua espingarda de dois canos, chamou Trovador, seu perdigueiro favorito, montaram a cavalo e viajaram juntos. No alto, seu Tito parou longo tempo, observando a magia da caçada de perdiz, vendo o mano abater as aves com extrema certeza, de certa pontaria. Juntaram as perdizes mortas. Tio Fidelcino engarupou algumas para levar com ele enquanto o mano Antônio carregava de novo a espingarda, que nenhum homem, caçador ou não, porta arma de fogo descarregada. Acabou de carregar e colocou a cápsula nos pentes e encostou a espingarda ao pé de uma moiteira, enquanto, por sua vez, atava a caça restante à garupeira. Tio Fidelcino aí se despediu e virou a rédea do animal rumo de Goiás. Não tinha andado cinquenta passos quando ouviu o estrondo. Olhou para trás surpreendido, inda em tempo de ver, na fumaça do tiro o mano, já montado, bambear de lado.

Correu a espora, amparou e desceu o irmão que já não se sustentava nos arreios. Viu de perto o desastre.

O cão da arma puxado por um cipó, a carga pegando à queima-roupa e arrebentando pelo peito, atingindo o pescoço, seccionando as artérias e a sangueira correndo, ele se esvaindo e inda ouviu o irmão suas últimas palavras: “Meu mano, como se morre tão cedo...”

E ali se achou ele naquele descampado ermo, sozinho com o agonizante, desesperado daquela tragédia e a braços com o cadáver – “que fazer?”. Tomou com dificuldade o corpo, atravessou na sela, amarrou como pôde e tocou puxando devagar com medo do morto vir ao chão e a dificuldade daquela viagem se tornar maior. Deu volta fora da casa grande. Devia poupar a sua mãe a agonia daquele filho desaparecido de forma trágica.

Lembrou-se do grito soturno dos que no sertão carregam mortos e pedindo ajutório, certo de que alguém, ouvindo, não deixaria de correr no rumo do chamado fúnebre. Gritou uma, duas vezes, não tardou aparecer gente, mesmo ali da fazenda ou saída das roças.

Mandou recado do desastre pra meu avô e que ia levando o morto para o retiro da Fazendinha donde devia sair o corpo na rede para o enterro em Goiás – sem que a mãe soubesse.

Meu avô providenciou o necessário: escravos e feitores foram separados do serviço e rumaram para a Fazendinha. Moradores e vizinhos acudiram e na chegada da noite saiu o fúnebre cortejo, acompanhado de dezena de pessoas a cavalo e a pé se revezando na carreira, lúgubre, agarrados aos varais da rede. Ao amanhecer chegaram a Goiás e pouco depois estava o corpo na sepultura. Depois do enterro, meu tio Fidelcino profundamente abalado foi acometido de uma febre cerebral, por vários dias, delirante e perturbado da razão. Convalescente, voltou para a Paraíso ainda um pouco vário do juízo – ao fim se libertou do choque. Minha bisavó de nada soube, os filhos conluiados lhe pouparam aquele transe. Língua foi passada para que nada se dissesse na casa e ninguém triscasse no caso. As escravas de dentro foram ameaçadas de castigos pesados se soltassem um ai sobre o ocorrido. A velha sempre perguntava:
- Cadê o Antônio?

A resposta era:
- “Está com o Tito na cidade”.

Passado algum tempo de espera tornava a inquerir:
- O Antônio não volta?

Tornavam a lhe dizer:
- “Viajou. Foi em Curralinho visitar a mana Cicinta, e lá está descansando os estudos.”

Isso por meses a fio. A cada pergunta davam uma resposta evasiva. No dia em que completou um ano do desastre, a velha escrava Liadora deixou escapar a verdade, esquecida das ameaças:
- Pois é Nhãnhã, hoje, fais um ano que Nhô Antônio se atirou na caçada de perdiz...”
- Que é que está dizendo, negra?
- Pelo amor de Deus Nhãnhã, eu se esqueci da incomendação e agora o Sinhô manda arrancá meu coro... num falei nada não, Nhãnhã!...

A velha levantou, fechou a porta por dentro e intimou a escrava a que contasse a verdade toda. Amedrontada, a negra obedeceu.

Contou do desastre na caçada de perdiz – do morto levado para Fazendinha por causa do susto de Nhãnhã, do corpo carregado na rede, de noite levado a enterrar em Goiás, da doença e variação do Tio Fidelcino e da incomendação de ninguém num contá pra Nhãnhã cum pena de uma tunda.

A velha mãe tudo aquilo ouvia de olhos cerrados, secos e de lábios frementes. Chamou meu avô, seu filho mais velho. Ordenou que nenhum castigo se desse a Liadora e que se mandasse fazer para ela veste preta, rebuço preto de cabeça e mais umas chinelas pretas. Mandou a escrava buscar um prato de cinza. Tomou de uma grande tesoura de tosar crina de animal, desenrolou os cabelos e com decisão cortou rente as duas tranças que atirou pela janela. Cobriu a cabeça de cinza. Entrou no quarto do oratório e fechou a porta por dentro. Ali ficou por dois dias e duas noites, muda, sem responder ao chamado dos filhos. Ao fim desse tempo, meu avô arrombou a porta e tirou nos braços a mãe semimorta. Muitos dias, ela esteve de cama, passada, inconsciente, lisa-levantou. Depois, reagiu, tomou sua veste de luto. Passou o rebuço na cabeça. Voltou calada à sua vida habitual. Nunca mais perguntou pelo morto. Quando meu avô, emocionado, tentou uma palavra de conforto, ela, rígida e severa, fez o filho se calar.

Tempos depois, meu tio Fidelcino mandou falar em casamento com a filha de um sitiante de longe e um dia voltou casado para a fazenda.

O que se passou com o casal naquela primeira noite de núpcias ninguém nunca soube. O certo e contado foi que o tio Fidelcino, depois de ter estado sozinho com a mulher, saiu para o terreiro onde passou a noite toda andando como doido, gesticulando e falando sozinho e a madrugada inda vinha longe já ele tinha trazido do pasto seu animal de sela e o da mulher. Tinha arreado em silêncio, fez a mulher montar e montou ele, também. Um escravo encangualhou o burro, enganchou as canastras de roupa e os dobros da dona, tocaram silenciosos para a estrada e antes do dia clarear de todo o tio Fidelcino chegava e entregava tudo: a desposada, suas canastras e os seus dobros, sem uma palavra, na porta do sogro. Calado, saltou na sela, o escravo na canga. Voltou. Não informou ninguém do acontecido nem disse coisa sobre aquilo. Abismou-se num mutismo de pedra e não houve na fazenda e na família quem tivesse coragem de perguntar, arriscar um comentário, uma indireta. Nunca ele fez referência àquele fato nem disse o nome da mulher nem aludiu ao casamento. Tudo aquilo foi para ele uma espécie de sonho ruim que procurou esquecer no cemitério do silêncio.

Quando não estava aluado ajudava meu avô na casa da serra. Tinha o senso de mecânica e conhecia madeira e grande parte da flora vegetal. Era dono de uma conversa rica e variada e instruída, fora da veneta. Contava casos, histórias e passagens do Caraça, reminiscências dos estudos e não gostava de ser contraditado. Não acreditava nos santos e não gostava de padres; era descrente ao céu e chamava sempre por Satanás, de cuja existência, também, duvidava. Almoçava e jantava na casa grande e quando se enfezava com qualquer coisa – uma falta de criança na mesa, um descuido dos grandes – não queria mais partilhar da refeição em comum. Da casa, então, mandava-se-lhe um prato reforçado que ele recebia de maus modos. Tinha ótima leitura, memória privilegiada e fazia cálculos admiráveis, dava solução breve e conhecendo aos mais intrincados problemas de matemática.

Com uma ponta no chão qualquer, cobiçava toda a madeira bruta que encontrava na serra e toda a madeira serrada que ia em carros de boi para a cidade – conhecia trabalhos de forja e dava têmpera de aço a qualquer pedaço de ferro inútil sem esquecer o espelho que ele fazia em forma de folhas de uva, de figo ou imagens cabalísticas. Restaurava velhas ferramentas e fazia fechaduras, chaves, gonzos, e carpintaria não tinha segredos para ele. Tinha capacidade para ensinar muito acima do requerido, mas só ensinava à velha moda. Minha tia pediu a ele para ensinar rudimentos ao Zezinho. Concordou e recomendou que mandasse buscar na cidade: cartilha, abecedário, papel, lápis, tinta, peda-lousa, enquanto ele elaborava a palmatória. Minha tia, timidamente, perguntou se não podia ensinar sem essa... ele respondeu com aspereza: “Laudemiria, a senhora já viu criança aprender sem palmatória? Eu nunca vi... sem ela não ensino. Com ela boto leitura, escrita e as quatro operações na cabeça do seu menino. Se não quiser, fica lá com seu filho”.

Entre o filho crescer analfabeto e apanhar alguns bolos de palmatória minha tia preferiu arriscar.

E lá se foi o Zezinho numa segunda-feira para a escola com mil recomendações de estudar bem, prestar muita atenção, não facilitar, não responder torto ao tio, não contestar suas razões e prestar com ligeireza qualquer servicinho que ele quisesse.

Do pagamento não se falou, podia até o tio se malquistar. Muito diplomata, a tia Laudemiria mandou comprar na cidade três metros de muito bom “toile de Vichi”. Costurou uma bonita camisa, lembrança para o tio e mandou o filho levar na primeira semana de estudo. Dali por diante tomou conta do velho: eram pratadas de mingau logo pela manhã; tigelas de sericaia com bastante canela; bolinhos fora de hora, biscoito, café, coalhadas e travessas de arroz mole com galinha e palmito, bem adubados de coentro e pimenta-de-cheiro para a ceia. Tudo isso para abrandar a natureza braba do mestre em benefício do filho.

Tudo correu muito bem no começo. A cartilha, as lições de escrita não apresentaram dificuldades. O ABC entrou com facilidade pela cabeça do Zezinho. Logo o pequeno ligou as vogais e separou as consoantes. Aprendeu a soletrar e com pouco mais lia por cima. Com a escrita não houve empecilho. Lição passada, lição estudada, lição sabida, e a leitura ia se tornando corrente.

O menino estava na idade certa. Era vivo, inteligente, tinha medo da palmatória e aprendia com facilidade. Passou para os números e logo conhecia os algarismos e seus valores. Começou a tabuada de somar, pulou para a de diminuir, entrou a de multiplicar. Veio então a pedra-lousa  foi acertando as primeiras contas e tirando as provas real e dos nove.

Os mestres daquele tempo usavam de uma certa malícia para aferir o adiantamento do aluno. Apresentavam uma operação errada sem nenhum aviso. O menino tinha que acusar o erro e acertar a conta. O mestre já tinha ensinado que a primeira verificação de uma conta se fazia tirando prova. Seja que não se achou bem seguro de ter achado o erro, seja que teve medo de mostrar, certo foi que se enrascou e não deu saída.

A palmatória bem lavrada em cabiúna preta com seu cabo de bom jeito e do comprimento legal, sua palma de três centímetros de espessura e cinco de diâmetro com um signo Salomão riscado no meio e cinco furinhos espaçados saiu no prego e fez sua entrada triunfal. Seis bolos para começar e puxados, para não caçoar. Da casa grande ouvia-se o choro alto da criança junto ao apelo aflitivo – apelo inútil, aliás. Tio Fidelcino tinha uma fé robusta na palmatória e muita segurança de suas consequências.

A escravidão tinha se acabado há menos de dez anos e isso de palmatórias em mão de criança não fazia impressão de maior nem um centésimo do que impressiona hoje, aos que só ouvem contar. Na casa grande nenhuma palha saiu do seu canto. Na hora do jantar não houve falta de apetite e ninguém censurou nem se condoeu. Comentou-se, isto sim, justificando: “Menino é isso mesmo... se não apanha não aprende... menino o que quer é brincar... isso é para o bem dele. Quando ficar homem agradece...”, por aí, o peso dos considerandos.

O Zezinho venceu mais aquela prova. Era ele o único aluno da escola. Os outros meninos do terreiro tiravam fogo só com a ideia daquele mestre e os pais não faziam conta de que os filhos aprendessem. Diziam mesmo que leitura de papé não enche barriga. Leitura em pobre é o mesmo que esquipado em égua. Coisa perdida, diziam eles, e nisso ficavam.

A primeira aula começava às oito da manhã e ia até as onze horas. Eram lições de leitura e de escrita, rudimentos de gramática, princípios de geografia e declinações do latim. O segundo período começava à uma hora e terminava quando o menino soubesse a lição. Esta era de contas, problemas, cálculos, medidas e algarismos romanos. Isso todos os dias, só não aos domingos e santificados e quando o tio Fidelcino ia pescar ou acompanhar a caçada. Quando ia de vara e anzol, Zezinho também levava sua varinha e o cumbuco com as iscas, com a recomendação de não dizer palavra para não assustar os peixes.

Minha tia costurava num quarto que deitava janelas no terreiro grande com vista para a mangueira (curral), para o rego d’água, para os pastos e matos distantes e para muito perto da casa do tio. Ouvia perfeitamente a leitura alta do filho e o brado do mestre à menor cincada. Aquela tarde era a lição das patacas. Pataca era valor e dinheiro superado, recolhido, desaparecido, mas se falava nela por tradição, como se fala hoje em mil-réis, dois ou cinco mil-réis, e os velhos compêndios que ensinavam seus valores não tinham sido substituídos. A lição de números era sempre cantada, tradicionalmente, cantada, na roça ou na cidade, O menino não ia lá muito bem com relação às patacas.

De vez em quando, o velho mestre chamava a atenção: “Veja lá, seu José... Olha bem que esta lição é para hoje”. A sala da escola era uma área anexada à casa de terra batida – uma meia-água – metade coberta, metade ao relento. A parte coberta era fechada com paredes de taipa com muitos pequenos buracos da queda do enchimento formando um crivo grosso com vista para o infinito. A parte descoberta era vedada de paus grosseiros a meia altura e quem entrava ali tinha só que levantar a perna e passar. Era fácil, primitivo e não havia precisão de cancela.

A parede do fundo tinha fincados uns tornos e pendurados ali esquadros, ferramentas, correiame, pedaços de correntes e uma horrível gargalheira do tempo da escravidão, onde o tio Fidelcino pendurava sua capanga com cabeças de palha e fumo de corda. Bem saliente, vistosa e no melhor lugar, estirava-se a palmatória.

Um banco pesado de carpinteiro servia de mesa e de banco mesmo. O menino estudava sentado num tamborete baixo com fundo de sola, tendo o banco na frente onde apoiava o livro e na rebaixa acomodava a lousa, o papel de escrita, cartilha, lápis e penas, canetas de encaixe. Quando deixava a escola cobria tudo com um pedaço de tábua larga e leve, que empurrava para o meio do banco durante o tempo de aula. Seu Tito tinha para ele sentar uma tripeça alta e polida, forrada de couro de lobo. Pertinho passava marulhando o rego d’água onde bebiam os animais do terreiro e as patas vinham ensinar natação aos seus patinhos. Esse rego era recolhido, desaguava num bicame largo, alto e bem cavado, dentro já dos muros do pátio da casa grande, onde nós pequenos tomávamos o banho mais festivo do mundo. Caía em cachoeirada no calabouço do monjolo e ia por outra bica, larga, funda e inclinada espadanar nas calhas do moinho, fazendo girar as pedras e moer o grão.

Era essa aguada sombreada de araçazeiras, sempre com araçás e altas goiabeiras enfolhadas sempre com flores e goiabas pelas pontas. Era o pouso preferido da passarinhada cantadeira. Nas mangueiras periquitos e corruínas e ararinhas roíam com alarido as primeiras mangas maduras.

A Camurça veio devagar com sua cria; entrou no rego, bebeu, abriu as pernas, arqueou o lombo muito preto e mijou dentro d’água. Subiu o barranco escalavrado e ganhou os campos – o bezerro ia na frente saltando, de cabo arrebitado. Tudo isso o Zezinho via pelos quadrinhos furados da parede.

Ia chegando a hora de lição e as patacas andavam por longe. Perto mesmo estava era o joão-de-barro que fazia uma casinha engraçada no galho torto do jenipapeiro da frente da casa grande, e toda gente da casa roubava tempo para fiscalizar aquela construção. Toda hora esquecida da lição vendo o passarinho bater a pelota, carregar no bico e voar para a construção... “Passarinho trabalhador...”, pensava ele, “não tem que fazer lição...”. Inda mais que passou o Cirico de Sá Balbina que ajudava o vaqueiro Anselmo e era o amigo do peito. Bateu os olhos lá dentro, não viu seu Tito, contou logo no buraco da parede que acabava naquela horinha de deixar a Cambraia na mangueira com cria nova – pretinho que nem carvão e tão molinho que o vaqueiro trouxe carregado no cabeçote dos arreios...

Zezinho ouviu a trompa da caça, alarido da cachorrada e a conversa alta e risonha de seu Manoel Candinho, compadre de meu avô, ranchado da casa grande. Depois veio a galinha de pescoço pelado e o galo topetudo de Mãe Preta, muito aquerenciados, cantar e fuxicar pertinho da parede. O leitão carunchinho refestelava-se no lameiro e com a quentura da tarde subia da mangueira um cheiro agressivo e sadio de lama misturado com urina e esterco de gado.

Seu Tito veio de dentro com os óculos na testa e quando não estava de boa catadura tinha um costume feio – meter a aba do bigode assanhado e queimado de sarro dentro da boca torturando com os dentes. Sinal de perigo na linha. Procurou pela lição. Uma pataca – trezentos e vinte. Duas patacas – seiscentos e quarenta. Três patacas – novecentos e sessenta. Quatro patacas – mil duzentos e quarenta. Cinco patacas... Não houve jeito de acertar. Números e somas se baralhavam no crivo da parede, na cabeça do Zezinho. Aí entrou a palmatória e entrou de rijo. “Chega, meu tio”, gritava o menino... E a palmatória subindo e descendo no compasso cadenciado da rude punição – um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, ia contando minha tia com o coração em suspenso, com as mãos nos ouvidos e o rosto lavado de lágrimas. Silenciou a palmatória. Cincou seu delator – um bem-te-vi – gritou no alto do coqueiro, Cambraia mugiu na mangueira lambendo a cria novinha. Ficou boiando no ar tranquilo da tarde sertaneja o soluço estertorado da criança assoando o nariz na fralda de camisa e voltando de novo às patacas.

Aí minha tia não se conteve e gritou da janela: “O que foi, meu filho?”. E o menino de lá, soluçando: “São as patacas, mamãe... são as patacas, mamãe...”.

Meu avô que vinha entrando da casa da serra ouviu o estralar dos últimos bolos. Previu que a contagem não ficaria só naquela dúzia. Foi logo à porta do mano e pediu que ele fosse até a casa da serra ajuda-lo em qualquer coisa.

Com isso o Zezinho foi despachado. Pulou o cercado e correu para o rego a refrescar as mãos escaldadas. O vaqueiro Anselmo passava com o guampo e a correia. Ia desleitar a Cambraia. Foi ver. O vaqueiro chegou à vaca com jeito, correu, passou a corda, levou ao moirão. Abaixou-se, a mão no úbere volumoso e rosado. Com perícia juntou a primeira teta grossa, alongada e túrgida numa chamada fina para a terra. Encheu o guampo três vezes repassando as tetas; três vezes jogou por cima da cerca num cocho fora da mangueira onde os leitões grunhiam o colostro amarelo e sangrento. Encheu de novo. Deu para o Zezinho: “Bota as mãos aí dentro, menino, que sara logo. Vi muito negro cativo com as mão rachada de bolo sará de um dia pru outro, lavando com leite ruim... num tem mesinha maior”.

Depois, verificou que a casa do joão-de-barro estava ainda nos alicerces. Reparou bem a mangueira – se contavam, ainda, as mangas maduras.

Acabada a lida o Cirico de Sá Balbina deu uma bolsa de visgo de gameleira que ele enfiou no bolso.

Depois do jantar, estirados no largo peitoril de pranchas do varandado, conversaram seus assuntos de meninos de roça e acertaram de botar o visgo no talo das mangas e pegar os periquitos gritadores.

Tranquilo com as coisas que mais o interessavam, no dia seguinte acertou bem as patacas. Naquela semana ia aprender contas de dividir por mais de um número. O joão-de-barro tinha já respaldado a casinha do galho torto do jenipapeiro. A última vez que enfiou a mão e apalpou, sentiu dois ovinhos dentro. Tinha posto grude de gameleira no talo de umas mangas maduras. Agora, ouvia da escola o grito desesperado dos periquitos se debatendo no visgo. A turma do carunchinho estava deitadinho no lameiro. A égua baia vinha procurando o cocho com seu potranquinho novo ainda, de pelo amarelo e frente aberta, e quem vinha atrás pastorando? O sem-vergonha do Peri, ariscado a tempos, num rebanho de éguas do seu Dito ao lado da casa de seu Vítor, do lado do Almeida. Vinha pela ração.

A vaca. Salmoura estava presa na mangueira com bezerro novo. Seu Tito tinha ido lá dentro e Cirico de Sá Balbina contou nos ouvidos da parede que o coqueiro-rei estava forrado de coco no chão, tão cheiroso que a gente sentia de longe, e que o vaqueiro avexado não deixou apanhá... que no Retiro Velho tinha achado no cupim do Tarumã um ninho de papagaio com dois fiotão encanudado, facinho de tirá. A galinha Nanica saiu da moita com uma rodada de pinto novo.

O monjolo subia e descia compassado, pilando arroz. Angolas gritavam: “Tou fraco, tou fraco”, no meio do pasto. Sá Balbina torrava farinha de milho no rancho do monjolo – sabia-se pelo cheiro. Na cozinha, Florinda fritava toucinho – sentia-se até o gostos dos torresmos e beijus. A água do cocho do monjolo descia pela bica e espadanava na roda do moinho onde a gente grande tomava banho. Ouvia-se dali o escachoar da água e o giro surdo das pedras. Um bando vagabundo de João Congo apareceu assanhado pelos coqueiros gritando à toa, de gaiatos.

Sentia-se o menino na posse e possuído de todo aquele mundo, além da parede. O cansaço daquela conta, ali, enrascada. Dividir por quatro números diferentes – não sabia como podia ser. O mestre tinha explicado e ele esquecido. Só entendia o chamado da terra, o mundo maravilhoso do sítio que estava pra fora da parede.

O joão-de-barro agora gritava doidamente na porta de sua casinha batendo as asas; de certo, ouviu qualquer coisa no tempo. Salmoura mugia na mangueira com o bezerro apartando e o ubre estourando entre as pernas abertas. Zezinho queria ver! Imaginava como era a cria da Salmoura. O coqueiro-rei tava forradinho de coco e os fiotes de papagaio já abrindo os canudos. Será que voavam do cupim?... Peri bufava no cocho vazio, queria sua ração costumeira.

“Vamos ver a conta, seu José. Vamos lá... e olhe que hoje estou com a testa amargando...”, era um modo de avisar. A lição estava errada. Com tanto passarinho na gaiolinha da cabeça, sentidos, não havia lugar para a secura dos números.

A palmatória baixou do torno e contou alto e compassadamente uma dúzia de vezes – seis bolos em cada mão estendida. O pensamento do menino refluiu para a lousa. Enxugou a cara – suor e lágrimas – na fralda da camisa de riscado, sacudiu as mãos ardendo, limpou o nariz, esquecendo do joão-de-barro na sua casinha do galho torto... Passou um trapinho molhado na conta errada e procurou acertar... seu Tito voltou para dentro. Melhorou alguma coisa... o coqueiro-rei... não fosse lá o Cirico de Sá Balbina e catasse tudo ele só... Do coqueiro-rei no Retiro Velho era perto a pé ou em pelo, no Peri; inda ia lá a hora que saísse... e via encanudados os fiotão de cupim do Tarumã.

Ia acertar a conta, dividir por seis, ali estava acima do traço: 078940. O que atrapalhava eram os zeros e o dividendo esparramado em cima em quantos algarismos – de propósito, meu Deus!

Não acertou e de novo a palmatória, conjugando o tempo e o espaço numa perfeita linha vertical, subiu e abaixou mais doze vezes – seis em cada mão. O choro e o grito agudo do Zezinho se perdiam na distância, rolavam e iam morrer nas baixadas silenciosas.

Sumiram por encantamento os fiotes encanudados. Desapareceu a vaca Salmoura. Os leitões desconfiados subverteram-se do lameiro e a frota unida foi se esconder debaixo do assoalho do paiol mais garantido e cheio de possibilidades. O joão-de-barro viu coisa ruim nos ares. Calou o bico, enfiou a violinha no saco e meteu-se dentro do seu edifício. De vez em quando botava a cabecinha na porta assustando o tempo. A galinha amarela chamou arrepiada a rodada dos pintos e foi catar seus bichinhos num lugar mais sossegado, lá longe no pasto dos bezerros. A pata marreca levou para outro lado o comboio dos patinhos e naquela tarde não houve natação no rego. Sá Balbina deixou a farinha passar do ponto, botou escora no monjolo antes do tempo, atulhou a panelinha do pito e com o dedão apertou com raiva uma brasa em cima e foi abanar o arroz, esconjurando. Da cozinha Mãe Preta rezava benzendo pra o lado da escola a reza brava de São Bento.

Zezinho, agora, só tinha pela frente os números. Passou o trapinho molhado na conta errada e tentou pela terceira vez acertar a divisão e errou pela terceira vez e pela terceira vez a palmatória subiu e desceu, ritmada. Mais seis bolos em cada mão estendida. Com o queixo duro, o corpo interessado e a calcinha cheia, no último, gritou: “Me acode, Nossa Senhora...” Aí ouviu-se que ganhou mais uma palmatória na cacunha, por conta de Nossa Senhora.

Depois da primeira dúzia minha tia tinha corrido para o moinho. Com o rodar surdo das pedras e o escochoar da água nas colheres não ouviu mais nada. Virou o ouvido para dentro de si mesma e ouviu foi o próprio coração se abrir, segredar para ela uma coisa nova. Assentada estava, assentada ficou na tampa da caixa de fubá, sem lágrimas, muito acalada e muito forte.

Lá na casa grande, minha bisavó se benzeu e se pôs a rezar a Santa Maria Eterna – suas Horas Marianas. Nós corremos para o quarto do oratório amedrontadas e acendemos vela e tia Nhá Bá mandou Ricarda que fosse correndo na casa da serra chamar meu avô, que viesse cá em cima, depressa.

N frente do Zezinho a lousa, os números e a palmatória forçaram; afinal, a porta do entendimento. Acertou a conta e entrou para sempre no mistério da divisão. Tinha terminado a escola. Foi para casa e passou a tarde toda com as mãos dentro de uma bacia com água e sal. No dia seguinte, tinha os dedos abertos e as mãos inchadas até os cotovelos mergulhadas no colostro.

Minha tia Laudemiria, aquela noite, conversou longamente com meu avô. Tinha resolvido se mudar para a cidade levando o filho, mesmo sem poder. Meu avô quis objetar, dissuadir e acabou concluindo: “Você é mãe...”.

Dali a duas semanas ela deixava o sítio a cavalo, montada no seu silhão de dona e o filho no Peri. Gente de confiança acompanhava trazendo o cargueiro das canastras e uma carga de mantimentos. Dias depois minha tia alugava uma casinha modesta na cidade. Tirou da canastra avelha máquina de costura tocada na manivela. Ajeitou a tesoura de cortar, uns antigos figurinos e uns antigos moldes. Ajeitou a casa como pôde e procurou encaminhar o filho.

Matriculou Zezinho na escola pública do mestre Gabriel Patroclo e que funcionava no cais do rio Vermelho, numa sala de porta e duas janelas com vidraças de malacacheta. O menino tomou lugar no último banco do fundo que era dos atrasados. Houve muito cochicho e risinho da gurizada por causa por causa do menino que vinha do sítio, vestia roupa de roceiro e calçava botina de elástico chiadeira, enquanto os da cidade iam descalços ou de chinelos que na saída correndo, brincando, jogando pedras, carregavam debaixo do braço.

A escola tinha uma série de bancos compridos e sem encosto. Banco dos adiantados na frente. Depois, eram os bancos dos médios, por último, no fundo da sala, eram os resíduos.

O mestre era o tipo perfeito do pedagogo daquele tempo. Trigueiro, atarracado, de bigode ralo, falava de soco e nas conversas triviais gostava de empregar termos eruditos. Sempre metido na casimira, bengala de castão de prata, chapéu duro, bem engomado, cadeia de ouro, bom relógio – diziam que ensinava bem. Nenhuma admiração causava ali a palmatória numa evidência pedagógica. Fazia parte da disciplina escolar e ninguém via aquilo nenhum escândalo ou contradição.

Alguns pais quando assentavam o filho na escola (não se dizia matricular e sim assentar, fazer o assentamento) inda porfiavam em recomendar: “Casque-lhe os bolos, mestre”. O mestre Patroclo tinha na sua escola um aluno auxiliar, escolhido dentre os mais adiantados, com a denominação expressiva e curiosa de “decurião”. Aliás, todas as escolas antigas tinham esse decurião, inclusive o próprio Seminário de Goiás, no tempo do sr. Dom Eduardo, de feliz memória. Competia ao decurião a regência da classe na falta do mestre ou mesmo com a presença deste, estribado, decerto, no bom latim docente-discente. O decurião tomava e passava as lições e fazia argumentação em dia de tabuada. O mestre supervisionava. Naquela tarde o decurião começou a tarefa de argumentar sobre contas multiplicadas com números variados, problemas ligeiros, requerendo pronta resposta.

Dirigia-se ao primeiro, se errasse passava ao segundo, e quem acertasse tomava a dianteira; quem errasse passava para trás e ganhava bolos.

Assim, automaticamente, argumentava a classe toda num teste de capacidade, memória ou competição intelectual esportiva – como se diz hoje. Certo argumento apresentado não alcançou resposta exata entre os adiantados; passou para os médios que também não souberam responder certo. Então, foi parar, por mera complacência de rotina e alguma ironia, no banco dos atrasados e o Zezinho já tinha a resposta certa na ponta da língua.

Saiu do banco de trás, passou pelos médios e tomou o primeiro lugar na frente dos adiantados, com espanto da classe e admiração do mestre. Na semana seguinte ele tinha tomado o lugar do decurião e com o direito, ainda, de usar a palmatória.

O mestre Patroclo depois de aposentado contava para quem quisesse ouvir que foi aquele menino – Zezinho – o único decurião de 10 anos que teve sua escola.

Estava resgatado o tio Fidelcino e a comprovada excelência de sua palmatória.


CORA CORALINA, O tesouro da casa velha. Seleção de Dalila Teles Veras. São Paulo: Global, 2002, p. 13 a 36.



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