Dia desses chegou até
mim um exemplar de ‘O tesouro da casa velha’, uma obra póstuma na qual foram
selecionados contos inéditos da escritora e poetisa Cora Coralina. Fiquei
realmente encantada com a leveza das narrativas e, sobretudo, com a
sensibilidade com que a autora retrata um Brasil pitoresco, cuja existência se
já não se extinguiu, é tão remota quanto é considerada improducente segundo os
parâmetros da mundanidade pós-moderna.
Diz Dalila Teles
Vieira, na página 07:
Toda literatura, é sabido, transforma-se em história quando a faz
presente, viva, repetindo-se para o leitor através de novas experiências de
cada leitura, do fato estético de que fala Borges que é o ato de abrir e ler um
livro. Cora propicia ao leitor esse momento mágico, a regressão, através da
máquina do tempo da literatura, a um Brasil bucólico, provinciano, conservador
e ainda tão desconhecido.
A autora resgata os
pedaços da vida privada da sua própria família e comunidade ao narrar, com a excelência
de uma contadora de estórias, aquilo que os livros didáticos se eximem de
publicar. Traz à tona não só os fatos, como também um esteio de costumes e
linguagem próprias à ambientação do fato narrado. O leitor se permite um estado
de abismamento com que se vê ambientado a um universo pouco afeito ao cotidiano
hodierno.
Ana Lins dos Guimarães
Peixoto Bretas, a goiana Cora Coralina, muito conhecida por seus poemas, é uma
contista eloquente. Exerce uma criticidade sutil e espirituosa, mas também é
hábil em dissecar a própria alma e deixá-la exposta para condoer e emocionar
quem a lê com razoável diligência. Embora tenha sido inserida no cenário
literário brasileiro aos 76 anos de idade, fiquei feliz em saber que ela
escrevia desde a mocidade.
Uma antiga referência
trazida por Dalila T. Vieira na pág. 09, o Annuário
Histórico e Geográphico e Descriptivo do Estado de Goiás, de 1910, tem registrado ipsis litteris :
Cora Coralina (Anna Lins dos Guimarães Peixoto) é um dos maiores talentos
que possui Goyaz; é um temperamento de verdadeiro artista. Não cultiva o verso,
mas conta na prosa animada tudo que o mundo tem de bom, numa linguagem fácil,
harmoniosa, ao mesmo tempo elegante. É a maior escriptora do nosso Estado,
apesar de não contar ainda 20 annos de edade.
De um tempo em que
fazia-se poesia metrificada e rimada, ela não se irmanou às exigências. Permitiu
à si mesma a graça da peculiaridade quanto ao modo de escrever, bastante
apropriada à sua retórica. Deixa para estas gerações um legado atraente de
informações, metáforas e emoções de todos os tipos. Partilharei algo de sua
dimensão prosaica.
Contas de dividir e trinta e seis bolos.
Minha tia Laudemiria tinha se separado do marido por
absoluta impossibilidade, divergência fundamental e biológica de vida em comum,
apesar de adorar o marido. Este lhe destinara por mês trinta e quatro mil e
setecentos réis de um montepio, aposentadoria ou o que seja. Com ela veio o seu
filho de cinco anos. Procurou a casa do pai que vivia na Fazenda Paraíso.
Chegou ali um dia montada a cavalo no seu silhão de dona
com o filho num piquirinho rosilho e manso bem arreadinho com todos os atavios:
selote de primeira, badana, coxinilho, sobrecilha, três barrigueiras e
rabichola. Dois homens de confiança tocavam os cargueiros com suas canastras e
dobros.
Nós éramos meninas naquele tempo e ficamos encantadas com
aquela tia de vida romântica, que mal conhecíamos de nome e invejamos desde
logo o cavalinho do primo, muito manso, de crina caída, de passo macio e que
tinha o nome maravilhoso de Peri.
Minha tia por esse tempo devia ter 32 anos. Era alta, fina
de corpo, de feição simpática, inteligente, boa, de trato delicado e amável com
todos. Tinha cabelos pretos penteados para trás em duas grossas tranças que
alcançavam a barra da saia. Foi uma força nova que chegou na casa grande, cheia
de gente velha carregada de achaques, queixas e desilusões.
Trazia na canastra sua máquina de costura e logo passou a
cortar e coser para a gente do terreiro de Mossamedes, em tempo de festa.
Passou logo a ajudar no governo da casa que era grande e movimentada.
Meu avô era nesse tempo um homem de recurso, com muito
prestígio pessoal, social, político e econômico. Tinha seus correligionários,
amigos e compadres, inúmeros agregados, protegidos e dependentes. Era grande
caçador – tinha cachorrada de fôlego e trompa de caça com bocal de prata, rica,
lavrada e muito mais de mil alqueires goianos de mato, cerrados, campos e rios
e ribeirões com toda diversidade de caça de pêlo, de pena e de escama, e a
Fazenda Paraíso não passava uma semana sem a graça insinuante dos hóspedes.
Minha tia era
solícita dona de casa. Tinha o dom da hospitalidade perfeita. Era diligente,
ativa, espirituosa, cuidadosa e alegre. Além da casa que atendia com esmero,
passou a tomar conta de um velho moinho tocado a água, que vivia quase ao
abandono e parado. Uma construção rústica, erguida no meio do pomar, com janela
em cima do rego d’água. Dentro era alvejado de uma poalha sutil e todo
rescendente das corolas do pomar. Fazia sombra nessa construção primitiva, um
abacateiro enorme sempre com frutos pendentes se esborrachando na caída e um
velho e esgalhado jambeiro onde trilavam todos os beija-flores da terra e
dobravam o canto inigualável os velhos sabiás de peito vermelho, nas longas
tardes de outubro.
Era um recanto romântico e de poesia que tia Laudemiria
transformou e fez funcionar e o trabalho ali, de vigilância e suprimento, era
agradável, proveitoso e limpo.
Entrava o milho debulhado e abanado na almoeda, descia
guaduado por uma canaleta móvel e caía pouco a pouco no furo das pedras
redondas, que, girando em contrário, reduziam o grão a um pó muito fino que a
própria rotação ia jogando numa caixa grande, quadrada, de tampa. Era ensacado
e vendido ali mesmo ou levado em cargueiros para o mercado de Goiás.
Com a ocupação do moinho, com as costuras e com o governo
da casa e mais a presença constante dos hóspedes que ali iam convalescer, tomar
ares, caçar, pescar, passar temporadas e coisas, tudo isso, repetido de forma
rotineira e mais, o tempo de moagem, o tempo das rosas e o tempo das colheitas
se sucedendo em ciclos continuados e rotineiros, os anos se passaram sem sentir
e meu primo Zezinho cresceu sem aprender nada que aproveitasse.
A escola ficava longe, minha tia não tinha coragem –
sozinha com o filho – enfrentar a vida na cidade com aluguel de casa e
manutenção. Tampouco, sentia ânimo de mandar o filho para o internato do
seminário, passivamente. Foi ficando pela roça e adiando providências com
relação ao filho para o ano que vem. Com o crescimento e a liberdade do meio,
sem disciplina da escola, o Zezinho ia aprendendo todas as malinesas dos
meninos com quem brincava e cada dia se tornava mais brutinho. Montava em pêlo
e saía disparado pelos campos com risco de se arrebentar. Subia pelas árvores
mais altas, se mostrava acima das copas e escorregava gaiteiro pelas galhas.
Sumia pelos ribeirões com anzol e cumbuco de iscas e voltava quando bem queria,
isso quando não ia tomar banho e nadar no grande açude que servia a casa. Lugar
perigoso que deixava minha tia apavorada e onde, há tempos, tinham se afogado
dois meninos peraltas.
Foi o tempo que ela se decidiu ir às falas com o tio
Fidelcino, mais conhecido por seu Tito, irmão de meu avô e que morava no
terreiro da fazenda, numa casinha separada. Esse tio era um homem de cinquenta
e cinco anos, neurastênico, nervoso, governado pelas luas – diziam -, de raiva
fácil, de manias constantes e permanentemente amuado. Tinha sofrido na sua vida
uma série de revezes e fracassos e seu espírito rebelado nunca se reabilitou
dessas decepções.
Era, no entanto, de rara habilidade para fazer coisas sem
aprender e de notável intuição para toda espécie de mecanismo, embora,
rudimentares como impunha o atraso do meio e do tempo. Homem de notáveis conhecimentos.
Sabia gramática, francês, latim, retórica e tinha rudimento de leis da física.
Estudara juntamente com outro irmão, no distante e afamado Seminário do Caraça
de onde saiu sem completar o curso, com uma doença grave nos olhos. Foi se
tratar na Corte. Ficou cego de uma vista e não quis terminar o estudo. Chegou a
ficar meio perturbado quando se deu o desastre com o mano Antônio, seu
companheiro do Caraça e que ali fizera curso brilhante e mais brilhante
concurso em concorrência com a fina flor da inteligência e cultura de vários
Estados, tirando o primeiro lugar, recusando alta colocação no Rio de Janeiro,
afirmando que estudara e fizera aquela prova não só para brilhar e sim para
servir Goiás, sua terra, e que voltaria para sua cidade onde aguardaria mercê
de Justiça.
O tio Fidelcino vinha da Paraíso para Goiás e o mano
Antônio combinou que o acompanharia até o alto da Boa Vista onde caçaria umas
perdizes. Tomou sua espingarda de dois canos, chamou Trovador, seu perdigueiro
favorito, montaram a cavalo e viajaram juntos. No alto, seu Tito parou longo
tempo, observando a magia da caçada de perdiz, vendo o mano abater as aves com
extrema certeza, de certa pontaria. Juntaram as perdizes mortas. Tio Fidelcino
engarupou algumas para levar com ele enquanto o mano Antônio carregava de novo
a espingarda, que nenhum homem, caçador ou não, porta arma de fogo
descarregada. Acabou de carregar e colocou a cápsula nos pentes e encostou a
espingarda ao pé de uma moiteira, enquanto, por sua vez, atava a caça restante
à garupeira. Tio Fidelcino aí se despediu e virou a rédea do animal rumo de
Goiás. Não tinha andado cinquenta passos quando ouviu o estrondo. Olhou para
trás surpreendido, inda em tempo de ver, na fumaça do tiro o mano, já montado,
bambear de lado.
Correu a espora, amparou e desceu o irmão que já não se
sustentava nos arreios. Viu de perto o desastre.
O cão da arma puxado por um cipó, a carga pegando à
queima-roupa e arrebentando pelo peito, atingindo o pescoço, seccionando as
artérias e a sangueira correndo, ele se esvaindo e inda ouviu o irmão suas
últimas palavras: “Meu mano, como se morre tão cedo...”
E ali se achou ele naquele descampado ermo, sozinho com o
agonizante, desesperado daquela tragédia e a braços com o cadáver – “que
fazer?”. Tomou com dificuldade o corpo, atravessou na sela, amarrou como pôde e
tocou puxando devagar com medo do morto vir ao chão e a dificuldade daquela
viagem se tornar maior. Deu volta fora da casa grande. Devia poupar a sua mãe a
agonia daquele filho desaparecido de forma trágica.
Lembrou-se do grito soturno dos que no sertão carregam
mortos e pedindo ajutório, certo de que alguém, ouvindo, não deixaria de correr
no rumo do chamado fúnebre. Gritou uma, duas vezes, não tardou aparecer gente,
mesmo ali da fazenda ou saída das roças.
Mandou recado do desastre pra meu avô e que ia levando o
morto para o retiro da Fazendinha donde devia sair o corpo na rede para o
enterro em Goiás – sem que a mãe soubesse.
Meu avô providenciou o necessário: escravos e feitores
foram separados do serviço e rumaram para a Fazendinha. Moradores e vizinhos
acudiram e na chegada da noite saiu o fúnebre cortejo, acompanhado de dezena de
pessoas a cavalo e a pé se revezando na carreira, lúgubre, agarrados aos varais
da rede. Ao amanhecer chegaram a Goiás e pouco depois estava o corpo na
sepultura. Depois do enterro, meu tio Fidelcino profundamente abalado foi
acometido de uma febre cerebral, por vários dias, delirante e perturbado da
razão. Convalescente, voltou para a Paraíso ainda um pouco vário do juízo – ao
fim se libertou do choque. Minha bisavó de nada soube, os filhos conluiados lhe
pouparam aquele transe. Língua foi passada para que nada se dissesse na casa e
ninguém triscasse no caso. As escravas de dentro foram ameaçadas de castigos pesados
se soltassem um ai sobre o ocorrido. A velha sempre perguntava:
- Cadê o Antônio?
A resposta era:
- “Está com o Tito na cidade”.
Passado algum tempo de espera tornava a inquerir:
- O Antônio não volta?
Tornavam a lhe dizer:
- “Viajou. Foi em Curralinho visitar a mana Cicinta, e lá
está descansando os estudos.”
Isso por meses a fio. A cada pergunta davam uma resposta
evasiva. No dia em que completou um ano do desastre, a velha escrava Liadora deixou
escapar a verdade, esquecida das ameaças:
- Pois é Nhãnhã, hoje, fais um ano que Nhô Antônio se
atirou na caçada de perdiz...”
- Que é que está dizendo, negra?
- Pelo amor de Deus Nhãnhã, eu se esqueci da incomendação e
agora o Sinhô manda arrancá meu coro... num falei nada não, Nhãnhã!...
A velha levantou, fechou a porta por dentro e intimou a
escrava a que contasse a verdade toda. Amedrontada, a negra obedeceu.
Contou do desastre na caçada de perdiz – do morto levado
para Fazendinha por causa do susto de Nhãnhã, do corpo carregado na rede, de
noite levado a enterrar em Goiás, da doença e variação do Tio Fidelcino e da
incomendação de ninguém num contá pra Nhãnhã cum pena de uma tunda.
A velha mãe tudo aquilo ouvia de olhos cerrados, secos e de
lábios frementes. Chamou meu avô, seu filho mais velho. Ordenou que nenhum
castigo se desse a Liadora e que se mandasse fazer para ela veste preta, rebuço
preto de cabeça e mais umas chinelas pretas. Mandou a escrava buscar um prato
de cinza. Tomou de uma grande tesoura de tosar crina de animal, desenrolou os cabelos
e com decisão cortou rente as duas tranças que atirou pela janela. Cobriu a cabeça
de cinza. Entrou no quarto do oratório e fechou a porta por dentro. Ali ficou
por dois dias e duas noites, muda, sem responder ao chamado dos filhos. Ao fim
desse tempo, meu avô arrombou a porta e tirou nos braços a mãe semimorta.
Muitos dias, ela esteve de cama, passada, inconsciente, lisa-levantou. Depois,
reagiu, tomou sua veste de luto. Passou o rebuço na cabeça. Voltou calada à sua
vida habitual. Nunca mais perguntou pelo morto. Quando meu avô, emocionado,
tentou uma palavra de conforto, ela, rígida e severa, fez o filho se calar.
Tempos depois, meu tio Fidelcino mandou falar em casamento
com a filha de um sitiante de longe e um dia voltou casado para a fazenda.
O que se passou com o casal naquela primeira noite de
núpcias ninguém nunca soube. O certo e contado foi que o tio Fidelcino, depois
de ter estado sozinho com a mulher, saiu para o terreiro onde passou a noite
toda andando como doido, gesticulando e falando sozinho e a madrugada inda
vinha longe já ele tinha trazido do pasto seu animal de sela e o da mulher.
Tinha arreado em silêncio, fez a mulher montar e montou ele, também. Um escravo
encangualhou o burro, enganchou as canastras de roupa e os dobros da dona,
tocaram silenciosos para a estrada e antes do dia clarear de todo o tio
Fidelcino chegava e entregava tudo: a desposada, suas canastras e os seus
dobros, sem uma palavra, na porta do sogro. Calado, saltou na sela, o escravo
na canga. Voltou. Não informou ninguém do acontecido nem disse coisa sobre
aquilo. Abismou-se num mutismo de pedra e não houve na fazenda e na família
quem tivesse coragem de perguntar, arriscar um comentário, uma indireta. Nunca
ele fez referência àquele fato nem disse o nome da mulher nem aludiu ao
casamento. Tudo aquilo foi para ele uma espécie de sonho ruim que procurou
esquecer no cemitério do silêncio.
Quando não estava aluado ajudava meu avô na casa da serra.
Tinha o senso de mecânica e conhecia madeira e grande parte da flora vegetal.
Era dono de uma conversa rica e variada e instruída, fora da veneta. Contava
casos, histórias e passagens do Caraça, reminiscências dos estudos e não
gostava de ser contraditado. Não acreditava nos santos e não gostava de padres;
era descrente ao céu e chamava sempre por Satanás, de cuja existência, também,
duvidava. Almoçava e jantava na casa grande e quando se enfezava com qualquer
coisa – uma falta de criança na mesa, um descuido dos grandes – não queria mais
partilhar da refeição em comum. Da casa, então, mandava-se-lhe um prato
reforçado que ele recebia de maus modos. Tinha ótima leitura, memória
privilegiada e fazia cálculos admiráveis, dava solução breve e conhecendo aos
mais intrincados problemas de matemática.
Com uma ponta no chão qualquer, cobiçava toda a madeira
bruta que encontrava na serra e toda a madeira serrada que ia em carros de boi
para a cidade – conhecia trabalhos de forja e dava têmpera de aço a qualquer
pedaço de ferro inútil sem esquecer o espelho que ele fazia em forma de folhas
de uva, de figo ou imagens cabalísticas. Restaurava velhas ferramentas e fazia
fechaduras, chaves, gonzos, e carpintaria não tinha segredos para ele. Tinha
capacidade para ensinar muito acima do requerido, mas só ensinava à velha moda.
Minha tia pediu a ele para ensinar rudimentos ao Zezinho. Concordou e
recomendou que mandasse buscar na cidade: cartilha, abecedário, papel, lápis,
tinta, peda-lousa, enquanto ele elaborava a palmatória. Minha tia, timidamente,
perguntou se não podia ensinar sem essa... ele respondeu com aspereza:
“Laudemiria, a senhora já viu criança aprender sem palmatória? Eu nunca vi...
sem ela não ensino. Com ela boto leitura, escrita e as quatro operações na
cabeça do seu menino. Se não quiser, fica lá com seu filho”.
Entre o filho crescer analfabeto e apanhar alguns bolos de
palmatória minha tia preferiu arriscar.
E lá se foi o Zezinho numa segunda-feira para a escola com
mil recomendações de estudar bem, prestar muita atenção, não facilitar, não
responder torto ao tio, não contestar suas razões e prestar com ligeireza
qualquer servicinho que ele quisesse.
Do pagamento não se falou, podia até o tio se malquistar.
Muito diplomata, a tia Laudemiria mandou comprar na cidade três metros de muito
bom “toile de Vichi”. Costurou uma bonita camisa, lembrança para o tio e mandou
o filho levar na primeira semana de estudo. Dali por diante tomou conta do
velho: eram pratadas de mingau logo pela manhã; tigelas de sericaia com
bastante canela; bolinhos fora de hora, biscoito, café, coalhadas e travessas
de arroz mole com galinha e palmito, bem adubados de coentro e
pimenta-de-cheiro para a ceia. Tudo isso para abrandar a natureza braba do
mestre em benefício do filho.
Tudo correu muito bem no começo. A cartilha, as lições de
escrita não apresentaram dificuldades. O ABC entrou com facilidade pela cabeça
do Zezinho. Logo o pequeno ligou as vogais e separou as consoantes. Aprendeu a
soletrar e com pouco mais lia por cima. Com a escrita não houve empecilho.
Lição passada, lição estudada, lição sabida, e a leitura ia se tornando
corrente.
O menino estava na idade certa. Era vivo, inteligente,
tinha medo da palmatória e aprendia com facilidade. Passou para os números e
logo conhecia os algarismos e seus valores. Começou a tabuada de somar, pulou
para a de diminuir, entrou a de multiplicar. Veio então a pedra-lousa foi acertando as primeiras contas e tirando
as provas real e dos nove.
Os mestres daquele tempo usavam de uma certa malícia para
aferir o adiantamento do aluno. Apresentavam uma operação errada sem nenhum
aviso. O menino tinha que acusar o erro e acertar a conta. O mestre já tinha
ensinado que a primeira verificação de uma conta se fazia tirando prova. Seja
que não se achou bem seguro de ter achado o erro, seja que teve medo de mostrar,
certo foi que se enrascou e não deu saída.
A palmatória bem lavrada em cabiúna preta com seu cabo de
bom jeito e do comprimento legal, sua palma de três centímetros de espessura e
cinco de diâmetro com um signo Salomão riscado no meio e cinco furinhos
espaçados saiu no prego e fez sua entrada triunfal. Seis bolos para começar e
puxados, para não caçoar. Da casa grande ouvia-se o choro alto da criança junto
ao apelo aflitivo – apelo inútil, aliás. Tio Fidelcino tinha uma fé robusta na
palmatória e muita segurança de suas consequências.
A escravidão tinha se acabado há menos de dez anos e isso
de palmatórias em mão de criança não fazia impressão de maior nem um centésimo
do que impressiona hoje, aos que só ouvem contar. Na casa grande nenhuma palha
saiu do seu canto. Na hora do jantar não houve falta de apetite e ninguém
censurou nem se condoeu. Comentou-se, isto sim, justificando: “Menino é isso
mesmo... se não apanha não aprende... menino o que quer é brincar... isso é
para o bem dele. Quando ficar homem agradece...”, por aí, o peso dos
considerandos.
O Zezinho venceu mais aquela prova. Era ele o único aluno
da escola. Os outros meninos do terreiro tiravam fogo só com a ideia daquele
mestre e os pais não faziam conta de que os filhos aprendessem. Diziam mesmo
que leitura de papé não enche barriga. Leitura em pobre é o mesmo que esquipado
em égua. Coisa perdida, diziam eles, e nisso ficavam.
A primeira aula começava às oito da manhã e ia até as onze
horas. Eram lições de leitura e de escrita, rudimentos de gramática, princípios
de geografia e declinações do latim. O segundo período começava à uma hora e
terminava quando o menino soubesse a lição. Esta era de contas, problemas,
cálculos, medidas e algarismos romanos. Isso todos os dias, só não aos domingos
e santificados e quando o tio Fidelcino ia pescar ou acompanhar a caçada.
Quando ia de vara e anzol, Zezinho também levava sua varinha e o cumbuco com as
iscas, com a recomendação de não dizer palavra para não assustar os peixes.
Minha tia costurava num quarto que deitava janelas no
terreiro grande com vista para a mangueira (curral), para o rego d’água, para
os pastos e matos distantes e para muito perto da casa do tio. Ouvia
perfeitamente a leitura alta do filho e o brado do mestre à menor cincada. Aquela
tarde era a lição das patacas. Pataca era valor e dinheiro superado, recolhido,
desaparecido, mas se falava nela por tradição, como se fala hoje em mil-réis,
dois ou cinco mil-réis, e os velhos compêndios que ensinavam seus valores não
tinham sido substituídos. A lição de números era sempre cantada,
tradicionalmente, cantada, na roça ou na cidade, O menino não ia lá muito bem
com relação às patacas.
De vez em quando, o velho mestre chamava a atenção: “Veja
lá, seu José... Olha bem que esta lição é para hoje”. A sala da escola era uma
área anexada à casa de terra batida – uma meia-água – metade coberta, metade ao
relento. A parte coberta era fechada com paredes de taipa com muitos pequenos
buracos da queda do enchimento formando um crivo grosso com vista para o
infinito. A parte descoberta era vedada de paus grosseiros a meia altura e quem
entrava ali tinha só que levantar a perna e passar. Era fácil, primitivo e não
havia precisão de cancela.
A parede do fundo tinha fincados uns tornos e pendurados
ali esquadros, ferramentas, correiame, pedaços de correntes e uma horrível
gargalheira do tempo da escravidão, onde o tio Fidelcino pendurava sua capanga
com cabeças de palha e fumo de corda. Bem saliente, vistosa e no melhor lugar,
estirava-se a palmatória.
Um banco pesado de carpinteiro servia de mesa e de banco
mesmo. O menino estudava sentado num tamborete baixo com fundo de sola, tendo o
banco na frente onde apoiava o livro e na rebaixa acomodava a lousa, o papel de
escrita, cartilha, lápis e penas, canetas de encaixe. Quando deixava a escola
cobria tudo com um pedaço de tábua larga e leve, que empurrava para o meio do
banco durante o tempo de aula. Seu Tito tinha para ele sentar uma tripeça alta
e polida, forrada de couro de lobo. Pertinho passava marulhando o rego d’água
onde bebiam os animais do terreiro e as patas vinham ensinar natação aos seus
patinhos. Esse rego era recolhido, desaguava num bicame largo, alto e bem
cavado, dentro já dos muros do pátio da casa grande, onde nós pequenos
tomávamos o banho mais festivo do mundo. Caía em cachoeirada no calabouço do
monjolo e ia por outra bica, larga, funda e inclinada espadanar nas calhas do
moinho, fazendo girar as pedras e moer o grão.
Era essa aguada sombreada de araçazeiras, sempre com araçás
e altas goiabeiras enfolhadas sempre com flores e goiabas pelas pontas. Era o
pouso preferido da passarinhada cantadeira. Nas mangueiras periquitos e
corruínas e ararinhas roíam com alarido as primeiras mangas maduras.
A Camurça veio devagar com sua cria; entrou no rego, bebeu,
abriu as pernas, arqueou o lombo muito preto e mijou dentro d’água. Subiu o
barranco escalavrado e ganhou os campos – o bezerro ia na frente saltando, de
cabo arrebitado. Tudo isso o Zezinho via pelos quadrinhos furados da parede.
Ia chegando a hora de lição e as patacas andavam por longe.
Perto mesmo estava era o joão-de-barro que fazia uma casinha engraçada no galho
torto do jenipapeiro da frente da casa grande, e toda gente da casa roubava
tempo para fiscalizar aquela construção. Toda hora esquecida da lição vendo o
passarinho bater a pelota, carregar no bico e voar para a construção...
“Passarinho trabalhador...”, pensava ele, “não tem que fazer lição...”. Inda
mais que passou o Cirico de Sá Balbina que ajudava o vaqueiro Anselmo e era o amigo
do peito. Bateu os olhos lá dentro, não viu seu Tito, contou logo no buraco da
parede que acabava naquela horinha de deixar a Cambraia na mangueira com cria
nova – pretinho que nem carvão e tão molinho que o vaqueiro trouxe carregado no
cabeçote dos arreios...
Zezinho ouviu a trompa da caça, alarido da cachorrada e a
conversa alta e risonha de seu Manoel Candinho, compadre de meu avô, ranchado
da casa grande. Depois veio a galinha de pescoço pelado e o galo topetudo de
Mãe Preta, muito aquerenciados, cantar e fuxicar pertinho da parede. O leitão
carunchinho refestelava-se no lameiro e com a quentura da tarde subia da
mangueira um cheiro agressivo e sadio de lama misturado com urina e esterco de
gado.
Seu Tito veio de dentro com os óculos na testa e quando não
estava de boa catadura tinha um costume feio – meter a aba do bigode assanhado
e queimado de sarro dentro da boca torturando com os dentes. Sinal de perigo na
linha. Procurou pela lição. Uma pataca – trezentos e vinte. Duas patacas –
seiscentos e quarenta. Três patacas – novecentos e sessenta. Quatro patacas –
mil duzentos e quarenta. Cinco patacas... Não houve jeito de acertar. Números e
somas se baralhavam no crivo da parede, na cabeça do Zezinho. Aí entrou a
palmatória e entrou de rijo. “Chega, meu tio”, gritava o menino... E a
palmatória subindo e descendo no compasso cadenciado da rude punição – um,
dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, ia contando
minha tia com o coração em suspenso, com as mãos nos ouvidos e o rosto lavado
de lágrimas. Silenciou a palmatória. Cincou seu delator – um bem-te-vi – gritou
no alto do coqueiro, Cambraia mugiu na mangueira lambendo a cria novinha. Ficou
boiando no ar tranquilo da tarde sertaneja o soluço estertorado da criança
assoando o nariz na fralda de camisa e voltando de novo às patacas.
Aí minha tia não se conteve e gritou da janela: “O que foi,
meu filho?”. E o menino de lá, soluçando: “São as patacas, mamãe... são as
patacas, mamãe...”.
Meu avô que vinha entrando da casa da serra ouviu o
estralar dos últimos bolos. Previu que a contagem não ficaria só naquela dúzia.
Foi logo à porta do mano e pediu que ele fosse até a casa da serra ajuda-lo em
qualquer coisa.
Com isso o Zezinho foi despachado. Pulou o cercado e correu
para o rego a refrescar as mãos escaldadas. O vaqueiro Anselmo passava com o
guampo e a correia. Ia desleitar a Cambraia. Foi ver. O vaqueiro chegou à vaca
com jeito, correu, passou a corda, levou ao moirão. Abaixou-se, a mão no úbere
volumoso e rosado. Com perícia juntou a primeira teta grossa, alongada e
túrgida numa chamada fina para a terra. Encheu o guampo três vezes repassando
as tetas; três vezes jogou por cima da cerca num cocho fora da mangueira onde
os leitões grunhiam o colostro amarelo e sangrento. Encheu de novo. Deu para o
Zezinho: “Bota as mãos aí dentro, menino, que sara logo. Vi muito negro cativo
com as mão rachada de bolo sará de um dia pru outro, lavando com leite ruim...
num tem mesinha maior”.
Depois, verificou que a casa do joão-de-barro estava ainda
nos alicerces. Reparou bem a mangueira – se contavam, ainda, as mangas maduras.
Acabada a lida o Cirico de Sá Balbina deu uma bolsa de
visgo de gameleira que ele enfiou no bolso.
Depois do jantar, estirados no largo peitoril de pranchas
do varandado, conversaram seus assuntos de meninos de roça e acertaram de botar
o visgo no talo das mangas e pegar os periquitos gritadores.
Tranquilo com as coisas que mais o interessavam, no dia
seguinte acertou bem as patacas. Naquela semana ia aprender contas de dividir
por mais de um número. O joão-de-barro tinha já respaldado a casinha do galho
torto do jenipapeiro. A última vez que enfiou a mão e apalpou, sentiu dois
ovinhos dentro. Tinha posto grude de gameleira no talo de umas mangas maduras.
Agora, ouvia da escola o grito desesperado dos periquitos se debatendo no
visgo. A turma do carunchinho estava deitadinho no lameiro. A égua baia vinha
procurando o cocho com seu potranquinho novo ainda, de pelo amarelo e frente
aberta, e quem vinha atrás pastorando? O sem-vergonha do Peri, ariscado a
tempos, num rebanho de éguas do seu Dito ao lado da casa de seu Vítor, do lado
do Almeida. Vinha pela ração.
A vaca. Salmoura estava presa na mangueira com bezerro novo.
Seu Tito tinha ido lá dentro e Cirico de Sá Balbina contou nos ouvidos da
parede que o coqueiro-rei estava forrado de coco no chão, tão cheiroso que a
gente sentia de longe, e que o vaqueiro avexado não deixou apanhá... que no
Retiro Velho tinha achado no cupim do Tarumã um ninho de papagaio com dois
fiotão encanudado, facinho de tirá. A galinha Nanica saiu da moita com uma
rodada de pinto novo.
O monjolo subia e descia compassado, pilando arroz. Angolas
gritavam: “Tou fraco, tou fraco”, no meio do pasto. Sá Balbina torrava farinha
de milho no rancho do monjolo – sabia-se pelo cheiro. Na cozinha, Florinda
fritava toucinho – sentia-se até o gostos dos torresmos e beijus. A água do
cocho do monjolo descia pela bica e espadanava na roda do moinho onde a gente
grande tomava banho. Ouvia-se dali o escachoar da água e o giro surdo das
pedras. Um bando vagabundo de João Congo apareceu assanhado pelos coqueiros
gritando à toa, de gaiatos.
Sentia-se o menino na posse e
possuído de todo aquele mundo, além da parede. O cansaço daquela conta, ali, enrascada.
Dividir por quatro números diferentes – não sabia como podia ser. O mestre
tinha explicado e ele esquecido. Só entendia o chamado da terra, o mundo
maravilhoso do sítio que estava pra fora da parede.
O joão-de-barro agora gritava doidamente na porta de sua
casinha batendo as asas; de certo, ouviu qualquer coisa no tempo. Salmoura
mugia na mangueira com o bezerro apartando e o ubre estourando entre as pernas
abertas. Zezinho queria ver! Imaginava como era a cria da Salmoura. O
coqueiro-rei tava forradinho de coco e os fiotes de papagaio já abrindo os
canudos. Será que voavam do cupim?... Peri bufava no cocho vazio, queria sua
ração costumeira.
“Vamos ver a conta, seu José. Vamos lá... e olhe que hoje
estou com a testa amargando...”, era um modo de avisar. A lição estava errada.
Com tanto passarinho na gaiolinha da cabeça, sentidos, não havia lugar para a
secura dos números.
A palmatória baixou do torno e contou alto e
compassadamente uma dúzia de vezes – seis bolos em cada mão estendida. O
pensamento do menino refluiu para a lousa. Enxugou a cara – suor e lágrimas –
na fralda da camisa de riscado, sacudiu as mãos ardendo, limpou o nariz,
esquecendo do joão-de-barro na sua casinha do galho torto... Passou um trapinho
molhado na conta errada e procurou acertar... seu Tito voltou para dentro.
Melhorou alguma coisa... o coqueiro-rei... não fosse lá o Cirico de Sá Balbina
e catasse tudo ele só... Do coqueiro-rei no Retiro Velho era perto a pé ou em
pelo, no Peri; inda ia lá a hora que saísse... e via encanudados os fiotão de
cupim do Tarumã.
Ia acertar a conta, dividir por seis, ali estava acima do
traço: 078940. O que atrapalhava eram os zeros e o dividendo esparramado em
cima em quantos algarismos – de propósito, meu Deus!
Não acertou e de novo a palmatória, conjugando o tempo e o
espaço numa perfeita linha vertical, subiu e abaixou mais doze vezes – seis em
cada mão. O choro e o grito agudo do Zezinho se perdiam na distância, rolavam e
iam morrer nas baixadas silenciosas.
Sumiram por
encantamento os fiotes encanudados. Desapareceu a vaca Salmoura. Os leitões
desconfiados subverteram-se do lameiro e a frota unida foi se esconder debaixo
do assoalho do paiol mais garantido e cheio de possibilidades. O joão-de-barro
viu coisa ruim nos ares. Calou o bico, enfiou a violinha no saco e meteu-se
dentro do seu edifício. De vez em quando botava a cabecinha na porta assustando
o tempo. A galinha amarela chamou arrepiada a rodada dos pintos e foi catar
seus bichinhos num lugar mais sossegado, lá longe no pasto dos bezerros. A pata
marreca levou para outro lado o comboio dos patinhos e naquela tarde não houve
natação no rego. Sá Balbina deixou a farinha passar do ponto, botou escora no
monjolo antes do tempo, atulhou a panelinha do pito e com o dedão apertou com
raiva uma brasa em cima e foi abanar o arroz, esconjurando. Da cozinha Mãe
Preta rezava benzendo pra o lado da escola a reza brava de São Bento.
Zezinho, agora, só tinha pela frente os números. Passou o
trapinho molhado na conta errada e tentou pela terceira vez acertar a divisão e
errou pela terceira vez e pela terceira vez a palmatória subiu e desceu,
ritmada. Mais seis bolos em cada mão estendida. Com o queixo duro, o corpo
interessado e a calcinha cheia, no último, gritou: “Me acode, Nossa Senhora...”
Aí ouviu-se que ganhou mais uma palmatória na cacunha, por conta de Nossa
Senhora.
Depois da primeira dúzia minha tia tinha corrido para o
moinho. Com o rodar surdo das pedras e o escochoar da água nas colheres não
ouviu mais nada. Virou o ouvido para dentro de si mesma e ouviu foi o próprio
coração se abrir, segredar para ela uma coisa nova. Assentada estava, assentada
ficou na tampa da caixa de fubá, sem lágrimas, muito acalada e muito forte.
Lá na casa grande, minha bisavó se benzeu e se pôs a rezar
a Santa Maria Eterna – suas Horas Marianas. Nós corremos para o quarto do
oratório amedrontadas e acendemos vela e tia Nhá Bá mandou Ricarda que fosse
correndo na casa da serra chamar meu avô, que viesse cá em cima, depressa.
N frente do Zezinho a lousa, os números e a palmatória
forçaram; afinal, a porta do entendimento. Acertou a conta e entrou para sempre
no mistério da divisão. Tinha terminado a escola. Foi para casa e passou a
tarde toda com as mãos dentro de uma bacia com água e sal. No dia seguinte,
tinha os dedos abertos e as mãos inchadas até os cotovelos mergulhadas no
colostro.
Minha tia Laudemiria, aquela noite, conversou longamente
com meu avô. Tinha resolvido se mudar para a cidade levando o filho, mesmo sem
poder. Meu avô quis objetar, dissuadir e acabou concluindo: “Você é mãe...”.
Dali a duas semanas ela deixava o sítio a cavalo, montada
no seu silhão de dona e o filho no Peri. Gente de confiança acompanhava
trazendo o cargueiro das canastras e uma carga de mantimentos. Dias depois
minha tia alugava uma casinha modesta na cidade. Tirou da canastra avelha
máquina de costura tocada na manivela. Ajeitou a tesoura de cortar, uns antigos
figurinos e uns antigos moldes. Ajeitou a casa como pôde e procurou encaminhar
o filho.
Matriculou Zezinho na escola pública do mestre Gabriel
Patroclo e que funcionava no cais do rio Vermelho, numa sala de porta e duas
janelas com vidraças de malacacheta. O menino tomou lugar no último banco do
fundo que era dos atrasados. Houve muito cochicho e risinho da gurizada por
causa por causa do menino que vinha do sítio, vestia roupa de roceiro e calçava
botina de elástico chiadeira, enquanto os da cidade iam descalços ou de
chinelos que na saída correndo, brincando, jogando pedras, carregavam debaixo
do braço.
A escola tinha uma série de bancos compridos e sem encosto.
Banco dos adiantados na frente. Depois, eram os bancos dos médios, por último,
no fundo da sala, eram os resíduos.
O mestre era o tipo perfeito do pedagogo daquele tempo.
Trigueiro, atarracado, de bigode ralo, falava de soco e nas conversas triviais
gostava de empregar termos eruditos. Sempre metido na casimira, bengala de
castão de prata, chapéu duro, bem engomado, cadeia de ouro, bom relógio –
diziam que ensinava bem. Nenhuma admiração causava ali a palmatória numa
evidência pedagógica. Fazia parte da disciplina escolar e ninguém via aquilo
nenhum escândalo ou contradição.
Alguns pais quando assentavam o filho na escola (não se
dizia matricular e sim assentar, fazer o assentamento) inda porfiavam em
recomendar: “Casque-lhe os bolos, mestre”. O mestre Patroclo tinha na sua
escola um aluno auxiliar, escolhido dentre os mais adiantados, com a denominação
expressiva e curiosa de “decurião”. Aliás, todas as escolas antigas tinham esse
decurião, inclusive o próprio Seminário de Goiás, no tempo do sr. Dom Eduardo,
de feliz memória. Competia ao decurião a regência da classe na falta do mestre ou
mesmo com a presença deste, estribado, decerto, no bom latim docente-discente.
O decurião tomava e passava as lições e fazia argumentação em dia de tabuada. O
mestre supervisionava. Naquela tarde o decurião começou a tarefa de argumentar
sobre contas multiplicadas com números variados, problemas ligeiros, requerendo
pronta resposta.
Dirigia-se ao primeiro, se errasse passava ao segundo, e
quem acertasse tomava a dianteira; quem errasse passava para trás e ganhava
bolos.
Assim, automaticamente, argumentava a classe toda num teste
de capacidade, memória ou competição intelectual esportiva – como se diz hoje.
Certo argumento apresentado não alcançou resposta exata entre os adiantados;
passou para os médios que também não souberam responder certo. Então, foi
parar, por mera complacência de rotina e alguma ironia, no banco dos atrasados
e o Zezinho já tinha a resposta certa na ponta da língua.
Saiu do banco de trás, passou pelos médios e tomou o
primeiro lugar na frente dos adiantados, com espanto da classe e admiração do
mestre. Na semana seguinte ele tinha tomado o lugar do decurião e com o
direito, ainda, de usar a palmatória.
O mestre Patroclo depois de aposentado contava para quem
quisesse ouvir que foi aquele menino – Zezinho – o único decurião de 10 anos
que teve sua escola.
Estava resgatado o tio Fidelcino e a comprovada excelência
de sua palmatória.
CORA CORALINA, O tesouro da casa velha. Seleção de Dalila
Teles Veras. São Paulo: Global, 2002, p. 13 a 36.
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