É uma sorte
poder amar. Muitos estão enrijecidos. Solenemente resfriados pelas privações
que, paulatinamente, os inibiram de cultivar este atributo simples e generoso,
cuja realização encontra na experiência a necessária gratuidade para ascender o
humano de sua previsível animalidade.
Não é da razão
do amor motivar-se. Nem se pode represá-lo sem promover-lhe injusta ruína. Seu
maior paradoxo é impingir dor, pois é o repositório de um lumisial de brasas incandescentes
engastado por espinhos.
O catolicismo
cultiva uma cândida manifestação de fé, originada no séc. XVII, da devoção de
duas monjas bem entendidas da orientação evangélica sobre a destinação do amor
como aprimoramento da ascese humana na busca pelo ideal das virtudes.
A Igreja Romana
tem essa particular vantagem em face das demais: oferecer grandes verdades no
mutismo das imagens sacras. A imagem é, pois, o Verbo não-revelado que pretende
ser alcançado no silêncio contemplativo.
Mas isto,
infelizmente, tem sido perdido. Há uma atual predileção dos fiéis pelo inferno
do barulho e do palavratório, pela dissipação da postura meditativa em louvores
escandalosos, cujo paradigma do alegramento transmuta a rotina religiosa em
evento festivo e tantas bizarrices.
Trata-se de uma iconofilia
que se apropria do paradoxo amoroso: os Sagrados Corações. Como na alquimia, visa
rechaçar a mobilidade dos opostos – vida e morte, prazer e dor – pela
pertinência dos princípios do masculino e do feminino representados nas imagens
de Jesus e de Maria, ambos com corações expostos.
A ilustração
sacra pretende denotar duas questões aqui abordadas. Primeiro, o estado amoroso
é incompatível com a situação de impasse. Segundo, o amor não está condicionado
a qualquer elemento externo para vivificar-se, pois reside no íntimo de cada
um.
Amor é ação, é
manifestação, é ação manifesta, mobilizada. O estado de amor é encontrado na
experiência e, por meio dela, o alimentamos. Todo o amor inclina-se à expressão,
todo ele pretende imprimir no mundo a sua marca. Amor deve ser a tocha que
inflama a escuridão da rotina, da discórdia, do apego por controle e segurança,
da corrida por ouro e prata.
Os ícones Jesus
e Maria são mostrados com corações desnudos, vivificados pela chama da ação. A
mensagem não revelada é: Ame! Importa amar e manifestar amor. Onde não
encontrar amor não estabeleça moradia. Amor seja guia e labor até o fim dos
dias.
O mestre
Rajneesh, conhecido simplesmente por Osho, acentua o padrão amoroso: “Quando
estiver morrendo, ame.” Outra vez assente o paradoxo não revelado: amor não
admite o torpor que é a ausência de si. Reclama o encontro consigo, o estado de
presença que se assemelha em número e grau com a consciência do processo de
morte.
É erroneamente
difundido acerca do amor tratar-se de um sentimento que se tem por alguém, ou a
idéia nutrida sobre alguém ou algo, ou desejo, ou sensação de completude com a
presença do outro. Sempre o elemento externo indica o tom da relação amorosa.
Adotamos,
contudo, a compreensão de que o amor é algo de si e por si. A ambivalência
entre a sensação do conforto afetivo ilustrado pelo calor das chamas e a
sensação de dor provocada pela presença de uma coroa de espinhos ou da ação de
uma espada, designa que amor e morte são experiências similares.
Remontam o
humano à introjeção, à auto reflexão. Amor é a fonte, nunca a foz, do grande
rio. “A cisterna contém; a fonte transborda”, versa William Blake em seu
Matrimônio do Céu e do Inferno. Amor não se aufere com a presença de outro, mas
no outro encontra amplitude. É algo de si que desprende e encontra no outro o
seu poder de manifestação. Porque a
ação do amor não se realiza na vacuidade.
A diversidade
entorno satisfaz essa necessidade de manifestação. O suplício angustiante do enamorado
é algo íntimo e nada tem a ver com o objeto pelo qual se pensa estar envolvido.
O elemento externo é via tangencial, não é o vértice da questão.
Se faltarem pessoas
com que amar, haverão animais. Excluídos os animais por completo, há a paisagem
com toda a sorte de plantas em verdor ou inflorescentes ou frutificadas.
Excluída a vegetação, há o som das águas que murmuram e se desmancham frementes
pelas rochas na busca incansável pelo sonho remoto dalgum oceano. E se faltarem
águas, há que mirar o firmamento.
Haverá espaço
para amar, se faltarem os olhos com que mirar o firmamento: é a si mesmo, à
graça de estar no mundo, a graça de estar consciente de si, apesar da brevidade
dos dias conhecidos. Amor não deixa de existir sem objeto com o qual se
manifeste. O objeto, o outro, permitem a
amplitude do estado amoroso por oferecer oportunidade à sua manifestação.
Por essa razão,
a pictografia sacra reproduz o Cristo com o coração como centro de si, uno e
completo como força vibrante que é, sem escusar-se da dor, selo de toda
experiência viva. A “espada coruscante” de Drummond, com a qual se imprime em
nós uma causticante “orquídea de fogo e lágrimas”, conforme retratado nestes
versos:
“Entretanto, ele chegou de manso e me
envolveu
em doçura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.
Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
Que trazias para mim e que teus dedos
confirmavam
ao se juntarem aos meus, na infantil procura
do Outro,
o Outro que eu me supunha, o Outro que te
imaginava,
Quando – por esperteza do amor – senti que
éramos um só.”
O eu que se
encontra no outro ou, mais ainda, na ideia feita do outro. A livre expansão em
direção ao outro visa manifestar o amor. É via de realização, nunca condição de
existência. Mas esse Outro invocado pelo poeta é, certamente, a
expressão de uma existência máxima, a fonte Inominável para a qual tudo
converge.
Em muitas imagens o coração é apontado por uma das mãos, sendo apresentado
na outra um sinal de conjuração com os dedos polegar, indicador e médio para o
alto e os demais contraídos. É a invocação da Trinitude ou Trindade para assegurar
a projeção do amor como glória de vida. E a promessa é o amor. É pelo amor que
eternizamos o estar no mundo, grande breviário da paixão humana, paixão como
estado no qual se exsuda algo incontido. É a via de resgate para o Éden. A
única satisfação hábil com a qual quitamos o preço de estarmos vivos.
Jesus ou Maria
são personas míticas. É mister reconhecer-se na imagem sagrada, pois cada um de
nós é o sacrário divino cujo centro pulsa e se condoi em compaixão por si
mesmo, pela vulnerabilidade de toda natureza, pela finitude que certamente nos
subtrairá as cores e os aromas conhecidos, pela imposição da sentença de paz
eterna, de consequências assaz desconhecidas e que nos tolhem da razão assente.
O amor tem por
fonte pulsante o eu e sua manifestação é a necessidade do eu. A via do outro é
capricho ou sortilégio que mesmo diante da recusa ou da inércia não se altera, nem se
desfaz. Até porque o rio caudaloso do amor pode perseguir vias simultâneas com vistas a formar um imenso delta com que se difunde no esparso oceano da vida.
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