30 de novembro de 2015

Amor como fonte e expressão de si mesmo.









É uma sorte poder amar. Muitos estão enrijecidos. Solenemente resfriados pelas privações que, paulatinamente, os inibiram de cultivar este atributo simples e generoso, cuja realização encontra na experiência a necessária gratuidade para ascender o humano de sua previsível animalidade.





Não é da razão do amor motivar-se. Nem se pode represá-lo sem promover-lhe injusta ruína. Seu maior paradoxo é impingir dor, pois é o repositório de um lumisial de brasas incandescentes engastado por espinhos.


O catolicismo cultiva uma cândida manifestação de fé, originada no séc. XVII, da devoção de duas monjas bem entendidas da orientação evangélica sobre a destinação do amor como aprimoramento da ascese humana na busca pelo ideal das virtudes.


A Igreja Romana tem essa particular vantagem em face das demais: oferecer grandes verdades no mutismo das imagens sacras. A imagem é, pois, o Verbo não-revelado que pretende ser alcançado no silêncio contemplativo.


Mas isto, infelizmente, tem sido perdido. Há uma atual predileção dos fiéis pelo inferno do barulho e do palavratório, pela dissipação da postura meditativa em louvores escandalosos, cujo paradigma do alegramento transmuta a rotina religiosa em evento festivo e tantas bizarrices. 
  





Trata-se de uma iconofilia que se apropria do paradoxo amoroso: os Sagrados Corações. Como na alquimia, visa rechaçar a mobilidade dos opostos – vida e morte, prazer e dor – pela pertinência dos princípios do masculino e do feminino representados nas imagens de Jesus e de Maria, ambos com corações expostos.


A ilustração sacra pretende denotar duas questões aqui abordadas. Primeiro, o estado amoroso é incompatível com a situação de impasse. Segundo, o amor não está condicionado a qualquer elemento externo para vivificar-se, pois reside no íntimo de cada um.


Amor é ação, é manifestação, é ação manifesta, mobilizada. O estado de amor é encontrado na experiência e, por meio dela, o alimentamos. Todo o amor inclina-se à expressão, todo ele pretende imprimir no mundo a sua marca. Amor deve ser a tocha que inflama a escuridão da rotina, da discórdia, do apego por controle e segurança, da corrida por ouro e prata.



Os ícones Jesus e Maria são mostrados com corações desnudos, vivificados pela chama da ação. A mensagem não revelada é: Ame! Importa amar e manifestar amor. Onde não encontrar amor não estabeleça moradia. Amor seja guia e labor até o fim dos dias.


O mestre Rajneesh, conhecido simplesmente por Osho, acentua o padrão amoroso: “Quando estiver morrendo, ame.” Outra vez assente o paradoxo não revelado: amor não admite o torpor que é a ausência de si. Reclama o encontro consigo, o estado de presença que se assemelha em número e grau com a consciência do processo de morte.


É erroneamente difundido acerca do amor tratar-se de um sentimento que se tem por alguém, ou a idéia nutrida sobre alguém ou algo, ou desejo, ou sensação de completude com a presença do outro. Sempre o elemento externo indica o tom da relação amorosa.




Adotamos, contudo, a compreensão de que o amor é algo de si e por si. A ambivalência entre a sensação do conforto afetivo ilustrado pelo calor das chamas e a sensação de dor provocada pela presença de uma coroa de espinhos ou da ação de uma espada, designa que amor e morte são experiências similares.



Remontam o humano à introjeção, à auto reflexão. Amor é a fonte, nunca a foz, do grande rio. “A cisterna contém; a fonte transborda”, versa William Blake em seu Matrimônio do Céu e do Inferno. Amor não se aufere com a presença de outro, mas no outro encontra amplitude. É algo de si que desprende e encontra no outro o seu poder de manifestação. Porque a ação do amor não se realiza na vacuidade.


A diversidade entorno satisfaz essa necessidade de manifestação. O suplício angustiante do enamorado é algo íntimo e nada tem a ver com o objeto pelo qual se pensa estar envolvido. O elemento externo é via tangencial, não é o vértice da questão.


Se faltarem pessoas com que amar, haverão animais. Excluídos os animais por completo, há a paisagem com toda a sorte de plantas em verdor ou inflorescentes ou frutificadas. Excluída a vegetação, há o som das águas que murmuram e se desmancham frementes pelas rochas na busca incansável pelo sonho remoto dalgum oceano. E se faltarem águas, há que mirar o firmamento.


Haverá espaço para amar, se faltarem os olhos com que mirar o firmamento: é a si mesmo, à graça de estar no mundo, a graça de estar consciente de si, apesar da brevidade dos dias conhecidos. Amor não deixa de existir sem objeto com o qual se manifeste.  O objeto, o outro, permitem a amplitude do estado amoroso por oferecer oportunidade à sua manifestação.


Por essa razão, a pictografia sacra reproduz o Cristo com o coração como centro de si, uno e completo como força vibrante que é, sem escusar-se da dor, selo de toda experiência viva. A “espada coruscante” de Drummond, com a qual se imprime em nós uma causticante “orquídea de fogo e lágrimas”, conforme retratado nestes versos:
“Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
em doçura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.
Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
Que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
o Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,
Quando – por esperteza do amor – senti que éramos um só.”



O eu que se encontra no outro ou, mais ainda, na ideia feita do outro. A livre expansão em direção ao outro visa manifestar o amor. É via de realização, nunca condição de existência. Mas esse Outro invocado pelo poeta é, certamente, a expressão de uma existência máxima, a fonte Inominável para a qual tudo converge.







Em muitas imagens o coração é apontado por uma das mãos, sendo apresentado na outra um sinal de conjuração com os dedos polegar, indicador e médio para o alto e os demais contraídos. É a invocação da Trinitude ou Trindade para assegurar a projeção do amor como glória de vida. E a promessa é o amor. É pelo amor que eternizamos o estar no mundo, grande breviário da paixão humana, paixão como estado no qual se exsuda algo incontido. É a via de resgate para o Éden. A única satisfação hábil com a qual quitamos o preço de estarmos vivos.



Jesus ou Maria são personas míticas. É mister reconhecer-se na imagem sagrada, pois cada um de nós é o sacrário divino cujo centro pulsa e se condoi em compaixão por si mesmo, pela vulnerabilidade de toda natureza, pela finitude que certamente nos subtrairá as cores e os aromas conhecidos, pela imposição da sentença de paz eterna, de consequências assaz desconhecidas e que nos tolhem da razão assente.



O amor tem por fonte pulsante o eu e sua manifestação é a necessidade do eu. A via do outro é capricho ou sortilégio que mesmo diante da recusa ou da inércia não se altera, nem se desfaz. Até porque o rio caudaloso do amor pode perseguir vias simultâneas com vistas a formar um imenso delta com que se difunde no esparso oceano da vida.






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