10 de novembro de 2015

Um cadinho de tristeza.











É difundido que para se ler bem, deve-se ler com razoável hábito. E quanto mais leitura, melhor a manifestação da escrita por parte de quem lê. Quanto mais leitura, melhor condução de pensamento, maior clareza de ideias. Está-se no campo cognitivo, ainda.


Um poeta já se manifestou a respeito de a tristeza ser a matéria-prima de muitas composições – “Mas pra fazer um samba com beleza/ É preciso um bocado de tristeza/ É preciso um bocado de tristeza/ Senão, não se faz um samba não”. Porém, ainda não conheço o dito que para se ler bem também seja necessário o seu pouquinho razoável de tristeza.


Há textos escritos para desvelar esse sentimento e, se o leitor estiver absorto em alegria e satisfação, certamente não conseguirá alcançar o espírito da literatura em mãos. Há textos exigentes nesse sentido, cuja melhor assimilação do universo sensível do autor ou melhor apreensão do texto reclama o seu justo quinhão de tristeza.


Adquiri, recentemente, uma obra de Rubem Alves, com textos e anotações diversas que ele publicara sem compromisso com ordem nem método. É livro para ser degustado ao gosto da freguesia, de cabo a rabo, por tema, de vez em quando ou folheado apenas. O título é muito sugestivo. Chama-se Ostra Feliz Não Faz Pérola, da Editora Planeta.


Numa de suas anotações, ele conta que soube de um pai que devolveu uma obra sua à livraria porque a estória ali contada era muito triste para seu filho. Pois, o livro fez a criança chorar. Tratava-se do conto do Pássaro Encantado, escrito em circunstância de uma viagem que precisava realizar e tal expectativa de rompimento trouxe bastante angústia à sua filha pequena.


Triste daquele que evita a tristeza por medo da brisa fria que ela engendra. Este, digno da mais profunda miseração, talvez nela se afogue e careça da pujança suficiente para erguer-se. Não sabe ele que alegrias em excesso torna a todos superficiais e tolos. O infante já experimentava a profundidade da natureza viva e humana. Porque só o que é vivo é capaz de chorar.


Segue um texto de Cora Coralina, cuja completude só se realiza no coração do leitor receptivo.




ÚLTIMA IMPRESSÃO


Lá longe, nas terras adustas do norte, na serra do Bom Será, a casa pobre, de chão batido, cheia de crianças.


Choro de criança. Riso de criança. Brinquedo pobre de criança pobre. Áspera e dura a terra.


O sertanejo trabalha sozinho, de dia no roçado, de noite traça os tentos: laço, pontas, cabrestos. Dez bocas para comer, dez corpos para vestir. Pobre não raciona filhos...


José e Josefa, os gêmeos que a morte levou um dia à toa... mudavam os dentinhos... No coração do sertanejo a última impressão dos filhos mortos: trocavam os dentinhos...


Vai traçando pontas, vai puxando os tentos, vai contando à toa das crianças mortas, gêmeas, de sete anos, juntas na mesma rede pobre que as levou pra cova, no ombro de dois cabras, os padrinhos.


Rígidas, a boca aberta e nos dentinhos novos gravando no coração do pai o disco da última impressão: mudavam os dentinhos...


E a morte vai racionando, vai tabelando filho de pobre que veio ao mundo, para sofrer, para morrer...


Os jornais alertam às vezes: Mortalidade infantil... Pauperismo... Desnutrição... O maior do mundo... oito milhões de quilômetros quadrados... cento e vinte milhões de criaturas....


O sertanejo repassa os tentos... mãos agitadas, cordoalhas de veias, tentos de músculos, o pensamento distante...


Um dia vai também para o Sul, deixa a criançada crescer ou morrer.


E no espelho do tempo... os dentinhos brancos na boca roxa e fria que a morte arregaçou e que a saudade do pai retratou para sempre. Já vê tão longe o passado...


Morreram à toa... Mudavam os dentinhos...



Cora Coralina, Os tesouros da casa velha. Seleção e prefácio de Dalila Teles Veras. 5ª ed. São Paulo: Global, 2002, p. 87 e 88.







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