É difundido que para se ler bem,
deve-se ler com razoável hábito. E quanto mais leitura, melhor a manifestação
da escrita por parte de quem lê. Quanto mais leitura, melhor condução de
pensamento, maior clareza de ideias. Está-se no campo cognitivo, ainda.
Um poeta já se manifestou a
respeito de a tristeza ser a matéria-prima de muitas composições – “Mas pra
fazer um samba com beleza/ É preciso um bocado de tristeza/ É preciso um bocado
de tristeza/ Senão, não se faz um samba não”. Porém, ainda não conheço o dito
que para se ler bem também seja necessário o seu pouquinho razoável de
tristeza.
Há textos escritos para desvelar
esse sentimento e, se o leitor estiver absorto em alegria e satisfação, certamente
não conseguirá alcançar o espírito da literatura em mãos. Há textos exigentes
nesse sentido, cuja melhor assimilação do universo sensível do autor ou melhor
apreensão do texto reclama o seu justo quinhão de tristeza.
Adquiri, recentemente, uma obra
de Rubem Alves, com textos e anotações diversas que ele publicara sem
compromisso com ordem nem método. É livro para ser degustado ao gosto da
freguesia, de cabo a rabo, por tema, de vez em quando ou folheado apenas. O
título é muito sugestivo. Chama-se Ostra Feliz Não Faz Pérola, da Editora
Planeta.
Numa de suas anotações, ele
conta que soube de um pai que devolveu uma obra sua à livraria porque a estória
ali contada era muito triste para seu filho. Pois, o livro fez a criança
chorar. Tratava-se do conto do Pássaro Encantado, escrito em
circunstância de uma viagem que precisava realizar e tal expectativa de
rompimento trouxe bastante angústia à sua filha pequena.
Triste daquele que evita a
tristeza por medo da brisa fria que ela engendra. Este, digno da mais profunda
miseração, talvez nela se afogue e careça da pujança suficiente para erguer-se.
Não sabe ele que alegrias em excesso torna a todos superficiais e tolos. O infante
já experimentava a profundidade da natureza viva e humana. Porque só o que é
vivo é capaz de chorar.
Segue um texto de Cora Coralina,
cuja completude só se realiza no coração do leitor receptivo.
ÚLTIMA IMPRESSÃO
Lá longe, nas terras adustas do norte, na
serra do Bom Será, a casa pobre, de chão batido, cheia de crianças.
Choro de criança. Riso de criança. Brinquedo
pobre de criança pobre. Áspera e dura a terra.
O sertanejo trabalha sozinho, de dia no
roçado, de noite traça os tentos: laço, pontas, cabrestos. Dez bocas para
comer, dez corpos para vestir. Pobre não raciona filhos...
José e Josefa, os gêmeos que a morte levou um
dia à toa... mudavam os dentinhos... No coração do sertanejo a última impressão
dos filhos mortos: trocavam os dentinhos...
Vai traçando pontas, vai puxando os tentos,
vai contando à toa das crianças mortas, gêmeas, de sete anos, juntas na mesma
rede pobre que as levou pra cova, no ombro de dois cabras, os padrinhos.
Rígidas, a boca aberta e nos dentinhos novos
gravando no coração do pai o disco da última impressão: mudavam os dentinhos...
E a morte vai racionando, vai tabelando filho de pobre que veio ao mundo, para sofrer, para
morrer...
Os jornais alertam às vezes: Mortalidade
infantil... Pauperismo... Desnutrição... O maior do mundo... oito milhões de
quilômetros quadrados... cento e vinte milhões de criaturas....
O sertanejo repassa os tentos... mãos
agitadas, cordoalhas de veias, tentos de músculos, o pensamento distante...
Um dia vai também para o Sul, deixa a
criançada crescer ou morrer.
E no espelho do tempo... os dentinhos brancos
na boca roxa e fria que a morte arregaçou e que a saudade do pai retratou para
sempre. Já vê tão longe o passado...
Morreram à toa... Mudavam os dentinhos...
Cora Coralina, Os tesouros da
casa velha. Seleção e prefácio de Dalila Teles Veras. 5ª ed. São Paulo: Global,
2002, p. 87 e 88.
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