15 de outubro de 2014

Mais brisa e menos velocidade.





Cecília escreve, não sem certa perplexidade, sobre a introdução dos brinquedos mecânicos na rotina das crianças, em meados do século passado. Como tais brinquedos afetaram as interações infantis daquele tempo. Fico pensando sobre o que diria ela sobre as relações entre as crianças de nossos dias com a família, consigo mesmas, com o mundo.

Creio que uma criança, por sua natureza mesma, sempre buscará meios com os quais deter suas proposições míticas e oníricas. Mas é forçoso crer que crianças que deitam seus cotovelos sobre parapeitos de janela e observam a vida pelo lado de fora tenham, de fato, uma infância producente. Não é que se queira criar modelos de conduta – e quem sou eu para fazê-lo? – não é que se tenha por paradigma único a nostalgia de uma infância que se flerta por mera recordação, mas observo ser necessário um pouco mais de brisa em suas existências.

Recordo-me de um livro-documentário sobre a infância das crianças carvoeiras que apresentei à minha filha há cerca de dois anos em visita à biblioteca deste município. Ali, as fotografias denunciavam um viver isento de oportunidades, escravo das circunstâncias nas quais elas, as crianças, brincavam com tocos e com restos de qualquer coisa jogados a esmo. Sujas, mal vestidas, com escolaridade defasada e nutrição idem, num mundo peculiar de referência adulta e com perspectivas limitadas quanto à sua mudança.

A beleza da humanidade havida nessas crianças é a capacidade de ausentar-se de seus limites e transcender a miséria com a fantasia, com as disputas nas brincadeiras compartilhadas entre elas, não obstante o cansaço da lida com o trabalho no auxílio à subsistência de suas próprias famílias. O sentir-se responsável coexistindo com os modos da infância. Uma outra realidade para elas parece ser um salto para um mundo desconhecido e completamente novo.


Eu observo a distância dessa realidade, a julgar triste, mas considero a beleza da capacidade de uma criança carvoeira em recriar seu árido ambiente. Por que as crianças urbanas seriam tolhidas dos nortes lúdicos de sua humanidade? O efeito da velocidade na experimentação da infância, como bem adverte Cecília, é algo que lhes tolhe das coisas mais simples da vida. Retira-lhes mesmo desse estado de ser sereno que busca nas mínimas impressões, notas de verdadeira poesia para viver com satisfação.

E não é que o advento do universo digital nos têm ofertado o exato oposto de uma vida tranquila, cujas pausas, ao invés de entreter-nos, nos entediam? Assim também as crianças, encerradas em suas gaiolinhas de existir (parodiando Rubem Alves que se dizia dono de uma "gaiola de prender ideias" com que denominava o seu caderninho de pensamentos), não estariam elas, por inúmeras vezes, entediadas com a vasta quantidade de informações indigeríveis assimiladas a cada clique?

Não desgosto da utilização de brinquedos eletrônicos ou digitais, ou mesmo da utilização do meio televisivo para o ócio infantil. São mais recursos, apenas. O problema talvez, seja o tempo em que o ser humano se prostra frente a essas máquinas todas. Talvez, seja um problema vislumbrar-se demasiado com tais brinquedos, gerando uma perspectiva unicamente consumerista de satisfação pessoal do tempo.

E assim, o espaço no qual é exigido uma paciência razoável, para a elaboração de ideias ou criação de uma fantasia com bonecas e bonecos, ou mesmo a leitura de um livro, ou a assimilação de uma música, tudo isso cai por terra. O que dizer do universo criativo? Torna-se apático, porque um mundo de soluções rápidas é algo possível na esfera digital.

Cecília afirma que a introdução das máquinas faz com que as crianças desaprendam as brincadeiras de interação mútua e, com elas, a cordialidade e a leveza. E acrescento: assenta-se, na arena familiar, o individualismo e a introjeção, a falta de paciência para o diálogo e a aversão às oposições.

Tanto as gaiolinhas de existir não são saudáveis, que o crescimento estatístico de crianças obesas e/ou com problemas crônicos é uma mostra perceptível dessa realidade. Afora isso, leve-se em conta, o desespero das mães “moderninhas” à caça de psicólogos para salvaguardar a educação de seus próprios filhos ou ainda, o vasto mercado editorial na venda de livros-fórmula que prometem auxiliar os pais na lida com os estigmas desse tempo confuso e corrido.

É preciso que se diga: precisamos de brisa. Precisamos de pausas. Precisamos nos ausentar de nós mesmos e de nossas existências, como faziam as crianças carvoeiras, para vivenciar uma outra, uma que está em nós e se não nos é perceptível de imediato, é porque não nos estamos saudando com a devida reverência. Nesse aspecto, os educadores (pais e professores) devem ser para as crianças como os evocadores dessa brisa que inspira, que eleva, que sublima e anima.

Segue o texto da nossa autora.




É lamentável, mas os tempos andam tão maus que as próprias crianças já não sabem mais brincar.


Em dias mais tranquilos, elas gostavam de suas cantigas de roda, tinham um largo repertório, e à tardinha e à noite brincavam pelos quintais e pelas ruas, pelos jardins e pelas praças. Tinham também jogos cantados e falados, resíduos ou esboços de teatro, e com eles se entretinham, alegremente. Os brinquedos simples, primitivos e eternos, fáceis de obter e de conservar, não faltavam nem mesmo às mais pobres; e quase se podia saber em que mês se estava pelo aparecimento dos papagaios de papel ou das bolas de gude, do pião ou do bilboquê. As bonecas ingênuas ocupavam as meninas com preparativos de enxovais de batizado e casamento, conduzindo assim as pequeninas mãos à técnica da costura e do bordado por um caminho de resultados surpreendentes, graças à sua origem terna e sentimental.

Esses jogos, quase todos de grupo, estabeleciam relações sociais de cordialidade entre as crianças. Muitas amizades nasceram de partidas de gude ou “cinco Marias”, de cirandas e de fogos de artifício. E essa sociabilidade era autêntica, e de longa permanência, pois resistira às competições dos jogos, às rivalidades, aos despeitos, aprimorara o caráter nesses encontros de infância, que é quando se deve aprender a tolerância, a admiração, a justiça e outras coisas mais.

As crianças de hoje parecem-me irritadas e desnorteadas. Cerca-as uma atmosfera bravia, uma agitada atmosfera, que as deixa sem a suficiente serenidade para apreciar a beleza simples das pequenas coisas e admitir outras vidas, além da sua, neste mundo tão grande.


Os jogos de conjunto tendem a desaparecer, e são os brinquedos mecânicos que os substituem. Mas uma das coisas interessantes naqueles jogos era a sua barateza. Não há rua tão infeliz que não tenha pelo menos uma dúzia de crianças. Exceto aos pais, essas crianças não custam nada. É só reuni-las, fazê-las entoar umas tantas cantigas, e já temos uma festa, meio desafinada, meio rouca – mas há alguma festa que não seja meio rouca ou meio desafinada? Nunca vi.

Agora com as bicicletas e os patins e os automóveis destes tempos de velocidade, a história é outra. Nem todos os pais podem adquirir coisas tão caras para a sua prole. E, como os possuidores de tão custosas prendas, graças exatamente à sua qualidade de brinquedos velozes, podem estar quase ao mesmo tempo em muitas partes, resulta que uma boa porção da criançada sofre – sofre profundamente – por ver essas belas máquinas fora do alcance das suas possibilidades.

Não me quero deter na análise dos sentimentos que essa situação desperta na alma infantil. “Há muitas coisas neste mundo, Horácio”, que as crianças não podem entender...

Ainda uma coisa me parece pior: que os pais também sofram com essa situação. Esse sofrimento não resolve nada. E se um sofrimento não resolve nada, é inútil e deve ser eliminado. Deve ser substituído por uma coisa que resolva. A coisa que resolve é uma compreensão diferente da vida, e uma interpretação mais pura, mais sadia, mais isenta. E eu sei que dá um certo trabalho ter-se uma tal concepção do mundo que tudo deixe em seus lugares sem perturbar a paz de espírito de cada um. Mas, enquanto não se tem essa concepção, também não se tem essa paz, e, assim, é mister começar pelo único lado que é, verdadeiramente, começo.

Se os pais se lamentarem de não dar a seus filhos todas essas máquinas atraentes, mas um pouco tediosas que se inventam para brinquedo, podem causar um grande mal às crianças, aumentando o interesse naturalmente suscitado por essas coisas. Mas se não lhes derem grande atenção, se estiverem, eles mesmos, enamorados da infância e da beleza do mundo, conseguirão inspirar em seus filhos a sedução profunda de coisas que não custam nada, ou custam muito pouco, e encerram uma poesia delicada e imortal.

Outro dia, eu estava muito quieta contemplando esta cena: um pequeno almocreve da serra mirou e remirou o menino veranista que possuía uma dessas bicicletas fabulosas com que, nos circos, se fazem bailados de prata; por fim, propôs-lhe um negócio que, à sua experiência de pequeno comerciante, lhe parecia de alta vantagem: ele dava uma voltinha de bicicleta e o veranista duas voltinhas no seu cavalo...

Mas o veranista, como é da sua condição, dava uma grande importância a si mesmo e à sua propriedade. De modo que o negócio não se fez.

Está claro que a minha conclusão é desfavorável ao veranista; pois que o menino rude da montanha ache surpreendente aquela máquina cintilante e queira ver como funciona é natural; mas que o veranista, pessoa já alfabetizada, geralmente com casa própria e professor de inglês, não sabia apreciar a vantagem de uma voltinha a cavalo – cavalo, bicho que vive, relincha, sacode a crina, e pisa com um garbo de jovem de dezoito anos na Cinelândia – ah, isso é inconcebível.

E é por isso que eu digo que a arte de brincar se vai perdendo. A máquina está gastando a infância. Qualquer dia as criaturas humanas nascerão de barbas brancas, como Lao-Tsé. Oxalá, se vierem com a sua sabedoria...



MEIRELES, Cecília. A arte de brincar. Seleção e prefácio de Leodegário A. de Azevedo Filho. São Paulo: Global, 2003, p. 349-352, grifos nossos. Col. Melhores Crônicas.








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