4 de setembro de 2014

A mulher que coloria.






Era uma mulher de expressões sutis, conversa baixa e olhar enviesado. Um costume seu tragar o mundo no olhar de um doce amendoado. Este mundo, uma vez que fosse tragado, parecia transubstanciar-se de violência em delicadeza. Então, era quando pintava tudo o que podia para reunir suas impressões em cores e traços, pois estas eram as palavras com as quais estava familiarizada.

Não sabia ler, nem escrever. Não conhecia o mundo de signos frugazes que traduziam o universo, muitas vezes, de forma tosca e incompleta. Afinal, como podemos condenar o que vemos a um pequeno rol de traços e pontos? Ela podia ver além dos olhos, e sua forma de compreensão gerava ora explosões, vibrações e ondulações inquietas, ora levezas liquefeitas e maviosas manifestadas a partir de traços serenos.

E falava pouco. E quanto mais pintava, menos falava. E tanto mais observava, mais de cores imprimia o mundo. Seu mundo era grande e febril. Um largo céu luminoso e escaldante, com um horizonte ruborizado de fim de dia. Mas também era seu mundo dotado de profundidade e solidão, como um chuvisco de pequenos lumes dependurados sob um manto de azul negrumento ao fundo.

Não queria muito. A vida que conquistara até aí já lhe bastava.  Querer é perigoso. É despejar-se no mundo objetificado de futilidades de todos os formatos e preços e para todos os gostos. Querer é também perder-se. É preciso muito cuidado com a escolha do que se quer. Porque, sobretudo, não queria deixar de ser.

No tempo de sua mocidade, havia amor e desejo. Um desejo maior do que podia suportar sua simplicidade. Pagou um preço caro para si mesma. Perdeu-se. Foi um tempo de noites intermináveis. Seus olhos cor de âmbar se anuviaram. Vivia como quem anda indiferente sob a chuva num caminho largo com destino a lugar algum. Seu amor era um peso em seu rosto. A vida não sorria, embora os pássaros cantassem insistentes. Ela simplesmente não os escutava.

O amor calou suas preces. Culpa do amor? Não sabia. Não entendia. Só sentia que havia morrido algo em si e isto lhe doía. Um queimor na garganta por ressentir o broto daquela outra vida em si mesma conquistando um terreno que antes era apenas seu. O amor parasitando algo por dentro, invernando o peito, anuviando os olhos, pesando-lhe a fronte. Isto lhe doía.

Aprendeu amando que amar é para os fortes. Para as pessoas dotadas de personalidade competitiva, aquelas que lutam para conquistar os corações alheios, transpondo fronteiras e erguendo novas bandeiras. O amor para essas pessoas é um impulso que semeia vida e transforma tudo o que toca. Ela se viu transformada num ser híbrido entre a fonte e o parasita. Ela se desconhecia. Teve de calar para conter o que não compreendia.

Professava a serviência em silêncio. Limpar, lustrar, lavar, engomar e passar. A domesticidade em sua rotina lhe fez valer a subsistência. E, de certa forma, garantiu-lhe algum sossego no avançar dos anos. E, enquanto laborava, calava o querer mais íntimo. Até o dia em que lhe foram apresentadas as ferramentas com que poderia, sem constranger ninguém, expressar a pálida palavra, aquela palavra sem vida, desossada e embalsamada num segredo de amor que não pretendia violar.

Quem pode entender essa infância do coração? Ele sempre está aos pulos mesmo quando se deseja sossego. Silenciar o chamado do amor não o fez aquietar-se. E como não poderia trazer junto a si o calor que outrora serpenteou a umidade do seu corpo e pensamentos, passou a colorir seus modos de olhar e escutar o mundo.


Com as cores ela se recompunha. Reconduzia-se ao estado de onde havia se retirado. Reavivava-se em cada tela, passava dias produzindo. Não mais lhe habitava o ressentimento pelo amor forjado em brasas incandescentes de incertezas. Escolheu a companhia do silêncio, pois dele ouvia a natureza humana.




2 comentários:

Antonio Reinaldo disse...

"Querer é também perder-se. É preciso muito cuidado com a escolha do que se quer. Porque, sobretudo, não queria deixar de ser."

Encantado com tua narrativa. Escantado com a organização do teu blog. Como eu gostaria de saber organizar o meu.

Segue escrevendo... Esta tua fonte encanta.

Rey.

Carla Michelle Carneiro disse...

Obrigada pelas palavras de empatia e afeto. Sempre às ordens!
Um grande abraço!