Era uma mulher de expressões
sutis, conversa baixa e olhar enviesado. Um costume seu tragar o mundo no olhar
de um doce amendoado. Este mundo, uma vez que fosse tragado, parecia
transubstanciar-se de violência em delicadeza. Então, era quando pintava tudo o
que podia para reunir suas impressões em cores e traços, pois estas eram as
palavras com as quais estava familiarizada.
Não sabia ler, nem escrever. Não
conhecia o mundo de signos frugazes que traduziam o universo, muitas vezes, de
forma tosca e incompleta. Afinal, como podemos condenar o que vemos a um
pequeno rol de traços e pontos? Ela podia ver além dos olhos, e sua forma de
compreensão gerava ora explosões, vibrações e ondulações inquietas, ora levezas
liquefeitas e maviosas manifestadas a partir de traços serenos.
E falava pouco. E quanto mais
pintava, menos falava. E tanto mais observava, mais de cores imprimia o mundo.
Seu mundo era grande e febril. Um largo céu luminoso e escaldante, com um
horizonte ruborizado de fim de dia. Mas também era seu mundo dotado de
profundidade e solidão, como um chuvisco de pequenos lumes dependurados sob um
manto de azul negrumento ao fundo.
Não queria muito. A vida que
conquistara até aí já lhe bastava. Querer
é perigoso. É despejar-se no mundo objetificado de futilidades de todos os
formatos e preços e para todos os gostos. Querer é também perder-se. É preciso
muito cuidado com a escolha do que se quer. Porque, sobretudo, não queria
deixar de ser.
No tempo de sua mocidade, havia
amor e desejo. Um desejo maior do que podia suportar sua simplicidade. Pagou um
preço caro para si mesma. Perdeu-se. Foi um tempo de noites intermináveis. Seus
olhos cor de âmbar se anuviaram. Vivia como quem anda indiferente sob a chuva
num caminho largo com destino a lugar algum. Seu amor era um peso em seu rosto.
A vida não sorria, embora os pássaros cantassem insistentes. Ela simplesmente
não os escutava.
O amor calou suas preces. Culpa do
amor? Não sabia. Não entendia. Só sentia que havia morrido algo em si e isto
lhe doía. Um queimor na garganta por ressentir o broto daquela outra vida em si
mesma conquistando um terreno que antes era apenas seu. O amor parasitando algo
por dentro, invernando o peito, anuviando os olhos, pesando-lhe a fronte. Isto
lhe doía.
Aprendeu amando que amar é para os
fortes. Para as pessoas dotadas de personalidade competitiva, aquelas que lutam
para conquistar os corações alheios, transpondo fronteiras e erguendo novas
bandeiras. O amor para essas pessoas é um impulso que semeia vida e transforma
tudo o que toca. Ela se viu transformada num ser híbrido entre a fonte e o
parasita. Ela se desconhecia. Teve de calar para conter o que não compreendia.
Professava a serviência em
silêncio. Limpar, lustrar, lavar, engomar e passar. A domesticidade em sua
rotina lhe fez valer a subsistência. E, de certa forma, garantiu-lhe algum
sossego no avançar dos anos. E, enquanto laborava, calava o querer mais íntimo.
Até o dia em que lhe foram apresentadas as ferramentas com que poderia, sem
constranger ninguém, expressar a pálida palavra, aquela palavra sem vida,
desossada e embalsamada num segredo de amor que não pretendia violar.
Quem pode entender essa infância do
coração? Ele sempre está aos pulos mesmo quando se deseja sossego. Silenciar o
chamado do amor não o fez aquietar-se. E como não poderia trazer junto a si o
calor que outrora serpenteou a umidade do seu corpo e pensamentos, passou a
colorir seus modos de olhar e escutar o mundo.
Com as cores ela se recompunha.
Reconduzia-se ao estado de onde havia se retirado. Reavivava-se em cada tela,
passava dias produzindo. Não mais lhe habitava o ressentimento pelo amor
forjado em brasas incandescentes de incertezas. Escolheu a companhia do
silêncio, pois dele ouvia a natureza humana.
2 comentários:
"Querer é também perder-se. É preciso muito cuidado com a escolha do que se quer. Porque, sobretudo, não queria deixar de ser."
Encantado com tua narrativa. Escantado com a organização do teu blog. Como eu gostaria de saber organizar o meu.
Segue escrevendo... Esta tua fonte encanta.
Rey.
Obrigada pelas palavras de empatia e afeto. Sempre às ordens!
Um grande abraço!
Postar um comentário