20 de novembro de 2015

"A vida na verdade."




Visto que a verdade não pode morrer nem estar morta, há quem receba certas verdades como coisa morta, puramente teórica e que em nada lhes vivifica o espírito.

Kierkegaard dividia as verdades em essenciais e acidentais, e os pragmatistas modernos, liderados por William James, avaliam uma verdade ou um princípio científico segundo as suas conseqüências práticas. Assim, a alguém que diz acreditar que há habitantes em Saturno, perguntam-lhe qual das coisas que agora faz não faria ou qual das que não faz faria, no caso de não crer que há habitantes em tal planeta, ou em que modificaria a sua conduta, se mudasse de opinião a tal respeito. Mas este critério, assim tomado é de uma tacanhez inaceitável.

O culto da verdade pela verdade em si mesma é um dos exercícios que mais eleva o espírito e o fortifica.

Para a maioria dos eruditos, que habitualmente é gente mesquinha e invejosa, a busca insistente de pequenas verdades, o esforço por rectificar uma data ou um nome, não passa ou de um desporto ou de uma monomania ou de um pontinho de pequena vaidade; mas num homem de alma elevada e serena, e nos eruditos de erudição que se poderia chamar religiosa, tais buscas implicam um culto à verdade. Com efeito, aquele que não se acostuma a respeitá-la no pequeno nunca chegará a respeitá-la no grande. Além de nem sempre sabermos o que é o grande e o que é o pequeno, nem o alcance das consequências que se podem derivar de algo que avaliamos, não já como pequeno, mas como mínimo.

Todos ouvimos falar da religião da ciência que é o culto religioso pela verdade científica, a submissão do espírito frente à verdade objectivamente demonstrada, a humildade de coração para nos rendermos ao que a razão nos comprove como verdade, seja em que ordem for e mesmo que não nos agrade.

Este sentimento religioso de respeito pela verdade nem é muito antigo no mundo nem o possuem os que mais alardes fazem de religiosidade. Durante os primeiros séculos do cristianismo e na Idade Média, a fraude piedosa –  pia fraus – foi corrente. Bastava que uma coisa se considerasse edificante para que se pretendesse fazê-la passar por verdadeira. Cabendo, como cabe, num pedaço de papel do tamanho de uma mortalha de cigarro, o que os Evangelhos dizem de José, o esposo de Maria, houve quem tivesse escrito uma Vida de S. José, patriarca, que ocupa 600 páginas de leitura compacta. Que poderá ser o seu conteúdo, senão declamações ou piedosas fraudes?

De vez em quando recebo escritos, quer de católicos, quer de protestantes – mais destes, que têm mais espírito de proselitismo do que aqueles – em que se trata de demonstrar-nos tal e tal coisa conforme a seu credo, e neles costuma resplandecer muito pouco amor à verdade. Retorcem e violentam textos evangélicos, interpretam-nos sofisticadamente e acumulam argúcias apenas para os levar a dizer, não o que dizem, mas o que eles querem que digam. O resultado é que esses exegetas imbuídos de racionalismo demonstraram no seu culto religioso à verdade uma religiosidade muito maior do que os seus sistemáticos refutadores e detractores.

E este amor e respeito à verdade, este buscar nela a vida, pode exercer-se investigando as verdades que nos pareçam menos pragmáticas.

Já Platão fazia dizer a Sócrates no Parménides, que quem, quando jovem, se não exercitou a analisar esses princípios metafísicos, que o vulgo considera uma ocupação ociosa e de ociosos, jamais chegará a conseguir verdade alguma de valor. Isto é: traduzindo para a linguagem de hoje, aí nessa terra, os caçadores de moedas que desprezam as pilhérias jamais conhecerão algo que torne a vida mais nobre; e mesmo que façam crescer a fortuna terão paupérrima a alma, sendo durante toda a vida uns beócios. Séculos depois de Platão, outro excelso espírito, embora de têmpera diferente daquele, o chanceler Bacon, escreveu que

“não se hão de ter por inúteis aquelas ciências que não têm uso, sempre que agucem e disciplinem o engenho”.

Onde a cultura é complexa, todos compreenderam o valor prático da pura especulação e sabem quanto cabe a um Kant ou a um Hegel nos triunfos militares e industriais da Alemanha moderna. E sabem que, se na altura em que Staudt iniciou a geometria pura ou de posição este ramo da ciência não passava de uma ginástica mental, hoje assenta nela uma grande parte do cálculo gráfico que pode ser útil até para a extensão dos cabos.

Mas, além desta utilidade mediata, ou a longo prazo, que podem vir a ganhar os princípios científicos que nos parecem abstractos, há a utilidade imediata de que a sua investigação e o seu estudo educam e fortificam a mente muito melhor do que o estudo das aplicações científicas.

Quando começamos a renegar a ciência pura, que nunca verdadeiramente cultivamos – e por isso a renegamos – e tudo se transforma num falar de estudos práticos, sem entender bem o que isto significa, os povos em que mais progrediram as aplicações científicas censuram-se a si mesmos pelo politecnicismo e desconfiam dos pragmáticos. Um simples engenheiro – isto é, um engenheiro sem verdadeiro espírito científico, porque há os que o têm – pode ser tão útil para traçar uma via férrea como um mero advogado para defender um pleito; mas nem aquele fará avançar a ciência um passo, nem a este confiaria eu a reforma da Constituição de um povo.

Buscar a vida na verdade é, pois, tentar no culto desta enobrecer e elevar a nossa vida espiritual e não converter a verdade, que é e deve ser sempre viva, num dogma, que costuma ser uma coisa morta.

Durante um longo século lutaram os homens, apaixonando-se pela questão de se o Espírito Santo procede só do Pai ou do Pai e do Filho ao mesmo tempo; e foi esta luta que deu origem a que no credo católico se acrescentasse o Filioque, onde se diz qui ex Patre Filioque procedit. Mas hoje, que católico se apaixona por isto? Perguntai ao católico mais piedoso e de melhor boa fé, perguntai aos sacerdotes porque é que o Espírito Santo há de proceder do Pai e do Filho, e não só do primeiro, ou que diferença implica na nossa conduta moral e religiosa acreditar numa ou noutra coisa, deixando de lado a submissão à Igreja que ordena que assim se creia, e vereis o que vos diz.

O que outrora foi expressão de um vivo sentimento religioso, à qual com certo respeito se pode chamar verdade de fé, não passa hoje de um simples dogma morto.

E a condenação pelo atual Papa das doutrinas do chamado modernismo deve-se apenas a que os modernistas – Loisy, Le Roy, o padre Tyrrell, Murri, etc. – procuram devolver vida de verdades a dogmas mortos, e o Papa – ou melhor dizendo, os seus conselheiros –, coitado, não é capaz de mergulhar em tais funduras –, sabe, com acutilante sagacidade, que, ao tentar-se vivificar tais dogmas, estes acabam por morrer de todo.

Sabem que há cadáveres que, ao tratar-se de insuflar-lhes nova vida, se desfazem em pó. E esta é a principal razão por que se deve buscar a vida de todas as verdades: para que aquelas que parecem sê-lo, e não o são, se nos mostrem como realmente são, como não verdades ou apenas verdades aparentes. E o que há de mais oposto a buscar a vida na verdade é proscrever o exame e declarar que há princípios intangíveis. Não há nada que não deva examinar-se.

E eis aqui como se entrelaçam a verdade na vida e a vida na verdade: aqueles que não se atrevem a buscar a vida das verdades que professam como tais nunca vivem com verdade na vida. O crente que se opõe a examinar os fundamentos da sua crença é um homem que vive na insinceridade e na mentira. O homem que não quer pensar em certos problemas eternos é um embusteiro, e nada mais do que um embusteiro.

E é assim que costumam andar unidas, nos indivíduos e nos povos, a superficialidade e a insinceridade. Povo irreligioso, isto é, povo em que os problemas religiosos não interessam a quase ninguém – seja qual for a solução que se lhes dê –, é povo de embusteiros e exibicionistas, onde o que importa não é ser, mas parecer ser.

Salamanca, 1908.




UNAMUNO, Miguel de. Verdade e vida. Tradução de João da Silva Gama. Apresentação: Arthur Mourão. Covilhã: Universidade de Beira Interior - Lusofia, 2008, p. 7-12. Texto adaptado e com grifos nossos. Col. Textos Clássicos de Filosofia. Traduzido da edição de AGUILLAR, Ensayos, Tomo II, Madrid, 1951, p. 377-384.





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