Visto
que a verdade não pode morrer nem estar morta, há quem receba certas verdades
como coisa morta, puramente teórica e que em nada lhes vivifica o espírito.
Kierkegaard dividia as verdades em essenciais e acidentais, e os
pragmatistas modernos, liderados por William James, avaliam uma verdade ou um
princípio científico segundo as suas conseqüências práticas. Assim, a alguém
que diz acreditar que há habitantes em Saturno, perguntam-lhe qual das coisas
que agora faz não faria ou qual das que não faz faria, no caso de não crer que
há habitantes em tal planeta, ou em que modificaria a sua conduta, se mudasse de
opinião a tal respeito. Mas este critério, assim tomado é de uma tacanhez
inaceitável.
O culto da verdade pela verdade em si mesma é um dos
exercícios que mais eleva o espírito e o fortifica.
Para a maioria dos eruditos, que habitualmente é gente mesquinha
e invejosa, a busca insistente de pequenas verdades, o esforço por rectificar
uma data ou um nome, não passa ou de um desporto ou de uma monomania ou de um
pontinho de pequena vaidade; mas num homem de alma elevada e serena, e nos
eruditos de erudição que se poderia chamar religiosa, tais buscas implicam um
culto à verdade. Com efeito, aquele que não se acostuma a respeitá-la no pequeno
nunca chegará a respeitá-la no grande. Além de nem sempre sabermos o que é o
grande e o que é o pequeno, nem o alcance das consequências que se podem
derivar de algo que avaliamos, não já como pequeno, mas como mínimo.
Todos ouvimos falar da religião da ciência que é o culto
religioso pela verdade científica, a submissão do espírito frente à verdade
objectivamente demonstrada, a humildade de coração para nos rendermos ao que a
razão nos comprove como verdade, seja em que ordem for e mesmo que não nos
agrade.
Este sentimento religioso de respeito pela verdade nem é muito antigo
no mundo nem o possuem os que mais alardes fazem de religiosidade. Durante os
primeiros séculos do cristianismo e na Idade Média, a fraude piedosa – pia
fraus – foi corrente. Bastava que uma coisa se considerasse edificante para
que se pretendesse fazê-la passar por verdadeira. Cabendo, como cabe, num
pedaço de papel do tamanho de uma mortalha de cigarro, o que os Evangelhos
dizem de José, o esposo de Maria, houve quem tivesse escrito uma Vida de S. José,
patriarca, que ocupa 600 páginas de leitura compacta. Que poderá ser o seu
conteúdo, senão declamações ou piedosas fraudes?
De vez em quando recebo escritos, quer de católicos, quer de protestantes
– mais destes, que têm mais espírito de proselitismo do que aqueles – em que se
trata de demonstrar-nos tal e tal coisa conforme a seu credo, e neles costuma
resplandecer muito pouco amor à verdade. Retorcem e violentam textos
evangélicos, interpretam-nos sofisticadamente e acumulam argúcias apenas para
os levar a dizer, não o que dizem, mas o que eles querem que digam. O resultado
é que esses exegetas imbuídos de racionalismo demonstraram no seu culto
religioso à verdade uma religiosidade muito maior do que os seus sistemáticos
refutadores e detractores.
E este amor e respeito à verdade, este buscar nela a vida, pode exercer-se
investigando as verdades que nos pareçam menos pragmáticas.
Já Platão fazia dizer a Sócrates no Parménides, que quem, quando
jovem, se não exercitou a analisar esses princípios metafísicos, que o vulgo
considera uma ocupação ociosa e de ociosos, jamais chegará a conseguir verdade
alguma de valor. Isto é: traduzindo para a linguagem de hoje, aí nessa terra,
os caçadores de moedas que desprezam as pilhérias jamais conhecerão algo que
torne a vida mais nobre; e mesmo que façam crescer a fortuna terão paupérrima a
alma, sendo durante toda a vida uns beócios. Séculos depois de Platão, outro
excelso espírito, embora de têmpera diferente daquele, o chanceler Bacon, escreveu que
“não se hão de ter por inúteis aquelas ciências que não têm
uso, sempre que agucem e disciplinem o engenho”.
Onde a cultura é complexa, todos compreenderam o valor prático
da pura especulação e sabem quanto cabe a um Kant ou a um Hegel nos triunfos
militares e industriais da Alemanha moderna. E sabem que, se na altura em que
Staudt iniciou a geometria pura ou de posição este ramo da ciência não passava
de uma ginástica mental, hoje assenta nela uma grande parte do cálculo gráfico
que pode ser útil até para a extensão dos cabos.
Mas, além desta utilidade mediata, ou a longo prazo, que podem vir
a ganhar os princípios científicos que nos parecem abstractos, há a utilidade
imediata de que a sua investigação e o seu estudo educam e fortificam a mente
muito melhor do que o estudo das aplicações científicas.
Quando começamos a renegar a ciência pura, que nunca
verdadeiramente cultivamos – e por isso a renegamos – e tudo se transforma num
falar de estudos práticos, sem entender bem o que isto significa, os povos em
que mais progrediram as aplicações científicas censuram-se a si mesmos pelo
politecnicismo e desconfiam dos pragmáticos. Um simples engenheiro – isto é, um
engenheiro sem verdadeiro espírito científico, porque há os que o têm – pode
ser tão útil para traçar uma via férrea como um mero advogado para defender um
pleito; mas nem aquele fará avançar a ciência um passo, nem a este confiaria eu
a reforma da Constituição de um povo.
Buscar a vida na verdade é, pois, tentar no culto desta
enobrecer e elevar a nossa vida espiritual e não converter a verdade, que é e
deve ser sempre viva, num dogma, que costuma ser uma coisa morta.
Durante um longo século lutaram os homens, apaixonando-se pela
questão de se o Espírito Santo procede só do Pai ou do Pai e do Filho ao mesmo
tempo; e foi esta luta que deu origem a que no credo católico se acrescentasse
o Filioque, onde se diz qui ex Patre Filioque procedit. Mas hoje, que católico
se apaixona por isto? Perguntai ao católico mais piedoso e de melhor boa fé,
perguntai aos sacerdotes porque é que o Espírito Santo há de proceder do Pai e
do Filho, e não só do primeiro, ou que diferença implica na nossa conduta moral
e religiosa acreditar numa ou noutra coisa, deixando de lado a submissão à
Igreja que ordena que assim se creia, e vereis o que vos diz.
O que outrora foi expressão de um vivo sentimento religioso,
à qual com certo respeito se pode chamar verdade de fé, não passa hoje de um
simples dogma morto.
E a condenação pelo atual Papa das doutrinas do chamado
modernismo deve-se apenas a que os modernistas – Loisy, Le Roy, o padre
Tyrrell, Murri, etc. – procuram devolver vida de verdades a dogmas mortos, e o
Papa – ou melhor dizendo, os seus conselheiros –, coitado, não é capaz de
mergulhar em tais funduras –, sabe, com acutilante sagacidade, que, ao
tentar-se vivificar tais dogmas, estes acabam por morrer de todo.
Sabem que há cadáveres que, ao tratar-se de insuflar-lhes
nova vida, se desfazem em pó. E esta é a principal razão por que se deve buscar
a vida de todas as verdades: para que aquelas que parecem sê-lo, e não o são,
se nos mostrem como realmente são, como não verdades ou apenas verdades
aparentes. E o que há de mais oposto a buscar a vida na verdade é proscrever o
exame e declarar que há princípios intangíveis. Não há nada que não deva
examinar-se.
E eis aqui como se entrelaçam a verdade na vida e a vida na verdade:
aqueles que não se atrevem a buscar a vida das verdades que professam como tais
nunca vivem com verdade na vida. O crente que se opõe a examinar os fundamentos
da sua crença é um homem que vive na insinceridade e na mentira. O homem que não quer
pensar em certos problemas eternos é um embusteiro, e nada mais do que um
embusteiro.
E é assim que costumam andar unidas, nos indivíduos e nos
povos, a superficialidade e a insinceridade. Povo irreligioso, isto é, povo em
que os problemas religiosos não interessam a quase ninguém – seja qual for a
solução que se lhes dê –, é povo de embusteiros e exibicionistas, onde o que
importa não é ser, mas parecer ser.
Salamanca, 1908.
UNAMUNO, Miguel de. Verdade
e vida. Tradução de João da Silva Gama. Apresentação: Arthur Mourão. Covilhã: Universidade de Beira Interior - Lusofia, 2008, p. 7-12. Texto adaptado e com grifos nossos. Col. Textos Clássicos de Filosofia. Traduzido
da edição de AGUILLAR, Ensayos, Tomo II, Madrid, 1951, p. 377-384.
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