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Tomasz Alen Kopera. |
"O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
maliciosos,
Sentir-nos ir,
Tendo as crianças
Por nossas mestras
E os olhos cheios
De natureza..."
Alberto Caeiro
Kierkegaard diz,
em suas meditações por nome Pureza de Coração, que "a pessoa que fala sobre
a vida humana, que muda com o decorrer dos anos, deve ter o cuidado de declarar
a sua própria idade aos seus ouvintes". Trata-se de um conselho estranho
para aqueles que vêem a vida com os olhos da ciência, porque, para eles, os
olhos permanecem os mesmos, não são afetados pela passagem do tempo. Um bom par
de óculos pode resolver o problema da visão diminuída.
Kierkegaard sabia
o que os oftalmologistas não sabem: com a idade, os olhos não ficam mais
fracos. Eles ficam diferentes. Sob a luz do sol a pino eles vêem coisas luminosas.
Sob a luz do crepúsculo eles começam a ver as criaturas delicadas que não
suportam luz em excesso. O amor prefere a luz das velas. Gaston Bachelard,
em seu lindo livro A Chama de uma Vela, diz que "parece existir em nós
cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxuleante. Um coração sensível
gosta de valores frágeis. As fantasias da pequena luz nos levam de volta ao
reduto da familiaridade..."
"Assim estão
os meus olhos, assim estou eu, pois sou a luz que meus olhos emitem". Não foi isso que
Jesus disse (Mateus 6.22)? Penso que ele
aprovaria se me ouvisse dizendo: "Os olhos são as lâmpadas do corpo. Se teus
olhos forem crepusculares, crepuscular também será o teu corpo..." Quando
se vive sob a luz da manhã, ainda há muito tempo pela frente, e se pensa que a
vida começará a ser vivida depois de havermos colocado a casa em ordem. Há
tanta coisa para ser feita! Felizmente sabemos que as nossas mãos transformarão
o mundo! Marx nos ensinou que é isso o que importa. E a boca se enche de palavras de ordem e de
imperativos éticos e políticos. Ser cristão é fazer! Quando se vive sob a luz
crepuscular - a hora do Angelus -, sabe-se
que o trabalho ficou inacabado, o trabalho fica sempre inacabado, o tempo se
encarrega de desfazer o que fizemos, as mãos ficam diferentes, deixam de lado
as ferramentas, retorna-se ao lar, corpo e alma "voltam ao reduto da
familiaridade". Ao meio-dia se fazem trabalho e política. Ao crepúsculo se faz poesia. Ao
crepúsculo se sabe que não seremos salvos pelas obras. Ao crepúsculo se retorna à verdade evangélica e protestante que afirma que somente a Palavra nos salvará. Ao crepúsculo comemos palavras: é a hora sacramental, a hora da poesia. Ao crepúsculo se sabe que o que importa é "ser", simplesmente "ser"...
Não, o interesse
pelos sofrimentos dos homens não foi perdido. É que na hora crepuscular se
compreende que "mundos melhores não são feitos; eles simplesmente nascem" (e.e.
Cummings). Há uma revolução que se faz com poesia e alegria. É Neruda que o diz: a
Reforma Protestante foi feita com música, cantando. Caminhando e cantando...
O ser diante da
chama da vela: só olhos, só fantasia; ou diante de uma sonata de Beethoven (..);
ou diante de um poema de Alberto Caeiro:
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Tomasz Alen Kopera. |
"Sejamos
simples e calmos,
Como os regatos e
as árvores,
E Deus amar-nos-á
fazendo de nós
Belos como as
árvores e os regatos
E dar-nos-á verdor
na sua primavera
E um rio aonde ir
ter quando acabemos..."
Os deuses do
meio-dia não são os mesmos do crepúsculo. Interessante notar que o dia
bíblico começa com o crepúsculo, quando o sol se põe... Talvez essa seja a
maneira certa (já que Deus faz tudo ao contrário): tomar como início aquilo que
nossa vã sabedoria sempre achou que fosse o fim. Começar do fim... Aliás, é
este o conselho que o matemático polonês Polya dá àqueles que querem aprender a
resolver problemas de matemática: "Comece sempre pelo
fim!" Se ainda tivéssemos Pitágoras por nosso mestre, diríamos que o que é
verdade para a matemática tem de ser verdade também para a alma. Começar pelo fim!
Ver a vida inteira sob a luz crepuscular! Ao meio-dia o céu é um imenso mar
azul. O tempo está parado, imobilizado. Ao crepúsculo tudo se altera: o mar
imóvel se transforma em rio, as águas correm cada vez mais rápidas, as cores se
sucedem, o azul passando ao amarelo, ao rosa, ao vermelho, ao roxo, para,
finalmente, mergulhar na noite. "Especialmente na medida em que se vai
ficando mais velho", diz Alan Watts em seu livro sobre o taoísmo,
"vai-se tornando óbvio que as coisas não têm substância, pois o tempo
passa cada vez mais rapidamente, de forma que nos tornamos conscientes da
liquidez dos sólidos; as pessoas e as coisas se transformam em reflexos e rugas
na superfície da água".
Kierkegaard estava certo. É
preciso dizer a idade. Os olhos crepusculares não são olhos que vêem menos: são
olhos que vêem diferente. Eles vêem sob a perspectiva da morte. Pois é ela, a
morte, que se nos aparece ao crepúsculo. É só ela que nos permite ver o
crepúsculo.
"As nuvens
que se ajuntam ao redor do sol que se põe
ganham suas cores
solenes de um olho
que tem
atentamente vigiado a mortalidade dos homens..."
Estes são versos
de William Wordsworth. Não, não são as
cores lá fora que são belas e tristes. São as cores crepusculares que moram
dentro do olhar...
Talvez você
tenha-se assustado, quando me referi à morte. É compreensível. A vida inteira
ouvimos falar mal dela. E as religiões até fazem tudo para matar a morte, para
que não haja crepúsculos no mundo, para que o sol esteja permanentemente a pino.
"Mas ao
matar a morte a religião nos tira a vida", diz Octávio Paz. "A
eternidade despovoa o instante. Porque a vida e a morte são inseparáveis.
Tirando-nos o morrer a religião nos tira a vida. Em nome da vida eterna a
religião afirma a morte desta vida". O crepúsculo é belo por causa do rio,
o fluir do tempo que faz as cores mudarem... (...)
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Tomasz Alen Kopera. |
D. Juan, o bruxo
do livro de Castanheda, Viagem a Ixtlan,
chama a Morte de "conselheira". Ela nos torna mais sábios. Não é por
acaso que a sabedoria está associada à velhice. Hegel dizia que a coruja de Minerva
só abre suas asas no crepúsculo. E Roland Barthes, ao ficar velho (mas era bem
mais moço do que eu), afirmava que naquele momento ele se entregava ao
esquecimento de tudo o que aprendera a fim de poder chegar à sabedoria.
Que sabedoria nos
ensina a morte? É simples. Ela só diz duas coisas. Primeiro, nos aponta o crepúsculo,
a chama da vela, o rio, e nos diz: Tempus Fugit - o tempo passa e
não há forma de segurá-lo. E, logo a seguir, conclui: Carpe Diem - colha o dia
como quem colhe um fruto delicioso, pois esse fruto é a dádiva de Deus. Os poetas e
artistas têm sabido sempre disso. Porque a arte é isso, pegar o eterno que
cintila por um instante no rio do tempo. Como está escrito neste lindo
poema de Paul Bouget que Debussy musicou e a Barbra Streisand gravou no
maravilhoso CD Classical Barbra:
"Quando, ao
sol que se põe,
os rios ficam cor
rosa,
e um leve tremor
percorre
os campos de
trigo,
parece das coisas surgir uma súplica de
felicidade
que sobe até o
coração perturbado.
Uma súplica de
beber o encanto de se estar no mundo
enquanto se é
jovem e a noite é bela.
Pois nós nos
vamos,
como se vai esta
onda:
Ela, para o mar,
nós para a
sepultura..."
Num dos cadernos
de Camus encontra-se o seguinte parágrafo: "Os pássaros, durante o dia,
voam em todas as direções. Ao cair da noite, entretanto, dir-se-ia que eles
voam para um mesmo lugar. Assim, talvez, ao cair da noite da vida..." Eu
me sinto assim: ao chegar o crepúsculo, as muitas palavras que escrevi em todas
as direções, reduzem-se a algo extremamente simples. Aconteceu assim também com
Jorge Luis Borges, já bem mais velho do que eu.
"Se eu
pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais
erros. Não tentaria ser tão perfeito. Relaxaria mais. Seria mais tolo ainda do
que tenho sido. Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério. Seria até menos
higiênico. Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
subiria mais montanhas, nadaria mais
rios. Iria a lugares onde nunca fui,
tomaria mais sorvete e menos sopa. Teria mais problemas reais e menos problemas
imaginários. Eu fui uma destas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada
minuto de sua vida. Claro que tive momentos de alegria mas, se pudesse voltar a
viver, trataria de ter somente bons momentos. Porque, se não o sabem, disso é
feita a vida, só de momentos. Não percam o agora. Eu era um desses que nunca ia
a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e
um pára-quedas. Se voltasse a viver, viajaria mais leve. Se eu pudesse voltar a viver,
começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim
do outono. Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e
brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente. Mas, já
viram, tenho oitenta e cinco anos, e sei que estou morrendo..." (Jorge
Luis Borges)
Ricardo Reis disse
a mesma coisa num poema mais curto:
"Dia em que
não gozaste não foi teu:
Foi só durares
nele. Quanto vivas
Sem que o gozes,
não vives.
Não pesa que amas,
bebas ou sorrias:
Basta o reflexo do
sol ido na água
De um charco, se
te é grato.
Feliz a quem, por
ter em coisas mínimas
Seu prazer posto, nenhum
dia nega
A natural
ventura".
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Tomasz Alen Kopera. |
Beber o encanto de
estar no mundo! Não importa que ele nos venha em pequenos fragmentos de
alegria, de riso, de compaixão, de amizade, de silêncio, arroz e feijão, o
abraço de amor, a poesia, as coisas do dia-a-dia. Se você não sabe sobre que
estou falando, por favor, leia a poesia de Adélia Prado. São sacramentos,
fragmentos de uma felicidade que nos toca de leve, para logo se ir. A
felicidade é assim, não é coisa grande que vem para ficar. Sabe disso Guimarães
Rosa, que dizia que ela só acontece em raros momentos de distração. Mas é justo assim que Deus venha, quando estamos
distraídos, eternidade num grão de areia, reflexo do sol ido na água de um
charco.
Tudo é um grande
brinquedo. Brinquedo: coisa mais alegre e efêmera haverá? E é isso que nos
ensina a morte, que a vida é brinquedo, não pode ser levada a sério - o que nos
torna humildes e livres das alucinações de importância e de poder. Desenhos de
conchas na areia, como aquele imenso cavalo-marinho de caracóis que a
menina, do filme O Piano, fez na praia,
enquanto sua mãe tocava... Coisas que uma criança faz na praia, casas,
castelos, túneis, caminhos...
"E assim, num
dia de tempo calmo,
embora estando em
ilha distante,
contemplamos o mar
imortal
que nos trouxe até
aqui,
e vemos na praia
as crianças brincando
e ouvimos as
fortes águas eternamente
rolando..."
(e.e. Cummings, citando W. Wordsworth)
Logo a maré,
durante a noite, apagará tudo, e pela manhã a praia estará maravilhosamente
lisa, todas as cicatrizes saradas, como se nada tivesse acontecido. Haverá
metáfora mais bela para o perdão? E o brinquedo poderá começar de novo. Aquilo
que foi amado deve ser repetido. Por isso afirmamos: "Creio na
ressurreição do corpo": o que foi, voltará.
"O que
aconteceu acontecerá de novo,
o que já foi feito
será feito de novo,
nada de novo há
debaixo do sol"
(Eclesiastes 1.9)
Tempus Fugit.
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Tomasz Alen Kopera. |
"Vai,
portanto, come a tua comida e alegra-te com ela,
bebe o teu vinho
com um coração feliz.
Veste-te sempre de
branco
e que não falte óleo
perfumado nos teus cabelos.
Goza a vida com
quem amas todos os dias da tua vida...
Pois Deus já
aceitou o que fizeste..."
(Eclesiastes 9.7)
Rubem Alves
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