14 de outubro de 2015

Justificar-se na Ordem.





Insinuar na Ordem o espetáculo complacente das suas servitudes tornou-se um meio paradoxal, mas peremptório, de dilatá-la. Eis o esquema dessa nova demonstração: para isolar o valor de ordem que se quer restaurar ou desenvolver, primeiro manifestar detidamente suas mesquinharias, as injustiças que produz, as piadas que suscita; mergulhá-lo na sua imperfeição natural; depois salvá-lo apesar, ou antes, com a pesada fatalidade das suas taras. Exemplos? Não faltam.


Tomai um exército, manifestai cruamente o militarismo dos seus chefes, o caráter tacanho, injusto, de sua disciplina e mergulhai um ser médio, falível, mas simpático, arquétipo do espectador, nessa tirania idiota. E depois, de repente, revirai o chapéu mágico e extraí dele a imagem de um exército triunfante, bandeiras ao vento, adorável (...)


Tomai outro exército: apontai o fanatismo científico de seus engenheiros, sua cegueira; mostrai tudo o que um rigor tão inumano destrói: homens, casais. E a seguir, içai a bandeira, salvai a o exército pelo progresso, juntai a grandeza da primeira ao triunfo do segundo (Les Cyclone, de Jules Roy).


A Igreja, enfim: denunciem sem pudor o seu farisaísmo, a tacanhez dos seus carolas, explicai que tudo isso pode ser mortal, não camuflai nenhuma das misérias da fé. E depois in extremis insinuai que o Verbo, por mais ingrato que seja, é uma via de salvação para suas próprias vítimas, e justificai o rigor moral pela santidade daqueles que ele oprime (Living Room, de Graham Greene).


Trata-se de uma espécie de homeopatia: curam-se as dúvidas contra a Igreja, contra o Exército, pelo próprio mal da Igreja e do Exército. Inocula-se um mal secundário para prevenir ou curar um mal essencial. Admite-se que a revolta contra a inumanidade dos valores da ordem é uma doença comum, natural, desculpável; deve-se evitar uma oposição frontal e tentar exorcizá-la como um fenômeno de possessão: obriga-se o doente a representar o seu próprio mal, a conhecer a natureza da sua revolta, e a revolta desaparece; mais seguramente porque, depois disso, distanciada e observada, a ordem não é mais do que um mito maniqueísta, portanto fatal, vitorioso, consequentemente benéfico.  O mal imanente da servidão é resgatado pelo bem transcendente da religião, da pátria, da Igreja etc. Um pouco de mal “confessado” dispensa o reconhecimento de muito mal escondido.


Também é possível encontrar na publicidade um esquema romanesco que exemplifique a ação dessa nova vacina. Trata-se da publicidade da Astra. A historieta começa inevitavelmente com um grito de indignação dirigido à margarina: “Um creme feito com margarina? É impensável!” “Margarina? Teu tio vai ficar furioso!” E, depois, abrem-se os olhos, e a consciência perde a sua rigidez: a margarina é um alimento delicioso, agradável, digestivo, econômico, útil em todas as circunstâncias. Conhece-se a moral final: “Eis-vos libertos de um preconceito que vos custava caro!”


É deste mesmo modo que a Ordem nos liberta dos nossos preconceitos progressistas. O Exército, valor ideal? É impensável; vejam as suas fanfarronadas, o seu militarismo, a cegueira sempre possível dos seus chefes. A Igreja, infalível? Infelizmente é muito duvidoso que assim seja: vejam os carolas, os seus padres sem poder, o seu conformismo criminoso. E, depois, o bom senso faz as contas: o que são os inconvenientes menores da ordem comparados com as suas vantagens? Ela vale bem o preço de uma vacina. Que interessa, no fim das contas, que a margarina não seja senão gordura se o seu rendimento é superior ao da manteiga? Que importa, no fim das contas, que a ordem seja um pouco brutal ou um pouco cega se nos proporciona um baixo custo de vida? Eis-nos também libertos de um preconceito que nos custava caro, muito caro, que nos custava muitos escrúpulos, muitas revoltas, muitos combates e muita solidão.



BARTHES, Roland. Operação Astra. In: ________________________, Mitologias. Trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer, 4ª ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, p. 45 – 47. Título original: Mythologies. 




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