Medo
Não há nada de que a criatura humana
tenha mais pavor do que de morto. Deve haver realmente e de forma obscura uma
força tremenda, invisível e imensurável da parte de quem morreu sobre aquele
que anda firme na vida, anulando neste, a capacidade de resistir à presença, ao
contato ou à simples suspeita da aproximação daquele. Daí as inibições físicas
e psíquicas, incontroladas, mesmo quando se trata de pessoas queridas que já se
foram.
O pavor domina o vivo obliterando
todo o mecanismo do raciocínio e da capacidade de indagação e pesquisa
esclarecedora do sobrenatural quando este se apresenta espontaneamente. Falta
aos mais destemidos e temerários a coragem a perguntar, de inquerir Nem os
descrentes e corajosos e afoitos se sentem com a coragem de fazer perguntas ou
indagar qualquer coisa quando o caso se apresenta. Desse medo, medo obscuro,
profundo e selvagem que a criatura não conseguiu disciplinar, surgem os casos
trágicos, cômicos e humorísticos acontecidos com alguns mortos aparentes que
tornaram à vida e até, mesmo, a simples aparência, suposição e engano, ligados
à ideia da morte.
Viajava uma jardineira, expresso ou
perua, como se diz, de Goiânia para Goianópolis. Levava na coberta, entre malas
e trouxas, um caixão vazio de defunto, destinado para uma pessoa falecida
daquele distrito.
Logo adiante na estrada, um homem
parado, dá sinal e a perua para.
Dentro, tudo cheio. O homem que
precisava de seguir sua viagem aceitou de viajar na coberta com os volumes e o
caixão vazio. Subiu. O tempo tinha se fechado para chuva e logo começou a
pingar grosso. O sujeito em cima achou que não seria nada demais ele entrar
dentro do caixão e ali se defender da chuva. Pensou e melhor fez. Entrou,
espichou bem as pernas, ajeitou a cabeça na almofadinha que ia dentro, puxou a
tampa e bem confortado, ouvia a chuva cair.
Mais adiante, dois outros esperavam
condução. Deram sinal e a perua parou de novo; os homens subiram a escadinha e
se acocoraram no alto. Iam conversando e molhados com a chuva fina e
insistente.
Passado algum tempo o que ia
resguardado escutando a conversa ali em cima levantou devagarinho a tampa do
caixão e perguntou de dentro, só isto: “Companheiro, será que a chuva já
passou?”. Foi um salto só, que os dois embobados fizeram do coletivo, correndo.
Um quebrou a perna, o outro partiu
braços e costelas e ficaram ambos estatelados do susto e sem fala, na estrada.
Cora
Coralina, O tesouro da casa velha. Seleção e prefácio de Dalila Teles Veras. 5ª
ed. São Paulo: Global, 2002, p. 83 e 84.
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