Zé Sidrach e Dico Foggia
A gente mais antiga de Goiás inda se
lembra, com certeza, de um moço muito distinto, elegante dançarino de polka e
quadrilhas, seresteiro dos mais animados e de boa progenia de Pirinópolis,
naquele tempo– Meia Ponte – chamado José Sidrach. Era
farmacêutico do Hospital São Pedro de Alcântara no tempo dos almofarizes e do
velho receituário.
Não havia ainda injeções, ninguém
falava em hormônios, as glândulas internas eram mistérios não aprofundados e o
alfabeto das vitaminas não tinha quem o soletrasse.
As drogas eram manipuladas e
apresentadas em vidros com rótulos explicativos. Alguns preparados de fama
universal vinham da França, simultaneamente, com figurinos, perfumes,
cosméticos e sabonetes.
Aplicavam-se ventosas e sangrias.
Lia-se Chernoviz e Langnrd. Manuseavam-se velhos formulários e as doenças
tinham uma sequência tão lógica e tão certa que um simples receituário previa
tudo. Doente nenhum dava muito trabalho – sarava logo, morria ou
passava a crônico. O doente crônico era muito conhecido do médico. Eram doentes
da reserva e bem conhecidos dos práticos de farmácia. O farmacêutico sabia como
atender e que fórmulas aviar para entreter a relação amigável e constante da
vida com a enfermidade e para conter dentro da mais estreita tolerância
qualquer rebelião desta em prejuízo daquela.
O doente envelhecia naquela
cronicidade queixosa e morria de velho. Toda gente sabe que uma doença
incurável age mais ou menos como vacina defensiva contra outros achaques mais
graves.
José Sicrack, como vários rapazes
daquele tempo, gostava de passear a cavalo pelas ruas da cidade.
Ir a Santa Bárbara, ao Bacalhau;
subir e descer as ruas, parar nas janelas de gente conhecida, namorar, estacar
o animal nalguma esquina, apeiar, tomar parte na roda de conversa segurando a
rédea era uma liturgia do bom gosto daqueles tempos –exibição um pouco
pueril, mas era bonito, as moças gostavam e quem não podia fazer o mesmo sentia
inveja.
Para esse desfastio das tardes,
Sidrack comprou do Dico Foggia um bonito alazão de crina preta, que trazia bem
amilhado e bem raspado num pastinho de aluguel. Foi quando um dia desapareceu o
cavalo sem se saber como.
O Sidrach suspendeu as voltas
elegantes pelas ruas. Deu o alarme entre os amigos, mandou responsar Santo
Antônio pelo sumiço e emprasou o pessoal conhecido para reparar nos animais que
entravam e saíam da cidade.
Um dia o Dico Foggia, que era muito
pândego e trocista e gostava de uma brincadeira com os amigos, avisa o Sidrach
de ter visto o alazão amarrado na porta de uma casa na rua da Cambaúba.
O Sidrach correu a verificar a
proposta e viu de longe um animal alazão de crina preta numa certa porta.
Naquele tempo em Goiás, toda gente
andava vestida de casimira – calça, paletó e colete, relógio de cadeia,
camisa branca, de peito, punhos e colarinho engomados; cartolina, bengala e
botinas de pelica– modelo francês, não se deixava por
menos. Paris mandava o figurino, Londres as sarjas e casimiras e o Pascoal, ali
na rua Direita, cortava e costurava por preço acessível – fraque ou paletó.
Neste rigor andava a rapaziada de
Goiás a qualquer hora do dia ou da noite. Assim, bem posto, foi o Sidrach ao
encontro do alazão. Avistou o animal de longe e um indivíduo tomando o estribo.
De acordo com a indumentária do tempo
eram os modos e as falas: fino e cortês. Sidrach chegou perto e dissertou sobre
o animal roubado, assim, indiretamente. Condenou a apropriação indébita e o uso
indevido do objeto alheio. Discorreu com elegância e reclamou a entrega do
cavalo. O homem que ia montar já com a mão na rédea era apoucado de letras mas
gostou daquele moço bem vestido que lhe dirigia a palavra e gostou do vernáculo
só que não entendeu nada.
Não há ninguém que goste mais do
palavreado e retórica do que o ignorante; não entende mas fica fascinado quando
ouve o bem falar.
Vendo o Sidrach que o caipira não se
dava por achado, passou a ser mais enérgico e mandou com decisão que tirasse a
sela e lhe entregasse o cavalo antes que ele chamasse a polícia.
Só aí o homem compreendeu pela metade
e perguntou: “A módeque o sinhô tá quereno um cavalo e qual é ele?” José
Sidrach apontou com energia e com a bengala: é este... é este cavalo aqui, em
que você vai montar... este cavalo é meu...
Volta-se o caipira com a fala mais
descansada do mundo: − Mas, seu moço, esse cavalo é uma
égua...
Zé Sidrach mal reparou no engano e
foi tomar satisfação do Dico Foggia.
Cora Coralina, O tesouro
da casa velha. Seleção e prefácio de Dalila Teles Veras. 5ª ed. São Paulo: Global,
2002, p. 75 a 78.
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