16 de setembro de 2014

Feitiço para a alma humana.









No portal de entrada do mundo da feitiçaria se encontram escritas as palavras: “No princípio é a Palavra...”

Feitiçaria é o mundo onde as palavras têm poder. O feiticeiro fala e a palavra, sem o auxílio das mãos, realiza o que diz. Deus diz “Paraíso!”, e um jardim de delícias aparece. A bruxa diz “Sapo!”, e o príncipe se transforma em sapo.

Outro é o mundo da técnica e da ciência: ali as palavras não têm poder. As palavras podem ser ditas à vontade que nada acontece. No mundo da técnica e da ciência as palavras são apenas guias para as mãos. Veja o que faz a cozinheira! Você entenderá o que estou a dizer. Ela lê a receita. Lê para fazer. As palavras dão ordens às mãos. As mãos obedecem e eis um bolo! Assim cooperam ciência e técnica. A ciência dá a receita. Mas quem comeria uma receita? A técnica vem em socorro e transforma as palavras em comida.





Angelus Silesius, místico, escrevia em poesia. Um dos seus poemas diz:



Temos dois olhos.
Com um vemos as coisas do tempo,
efêmeras, que logo desaparecem.
Com o outro vemos as coisas da alma,
eternas, que permanecem.   

O primeiro olho se abre para o mundo. É nele que nascem ciência e técnica, como extensões de olho e mão. Os conhecimentos do mundo do primeiro olho nos dão meios para viver. Sem eles não sobreviveríamos. Mas eles não têm o poder de nos dar alegria.

O segundo olho se abre para esse imenso universo interior a que damos o nome de alma. É nesse mundo que moram o amor, a bondade, a beleza. Nele se encontram as fontes da alegria.

Sou um educador e escrevo para educadores.

O que é um educador? Não é um ser que se encontre ao final de um curso de pedagogia. Diplomas podem fazer professores, mas não têm o poder de gerar educadores. E. E. Cummings disse que mundos melhores não são feitos, eles simplesmente nascem. Digo o mesmo acerca dos educadores: eles não são feitos, eles nascem. Assim nascem também os poetas, os artistas, os profetas.

Duas são as tarefas da educação.     

A primeira delas tem a ver com o primeiro olho: ensinar o mundo que é, a um tempo, nosso corpo e nossa casa.

A segunda tem a ver com o segundo olho: despertar a alma para que o mundo não seja apenas um objeto de conhecimento, mas, acima de tudo, um objeto de deleite. Essa capacidade de degustar o mundo é aquilo a que damos o nome de sabedoria. Sabedoria é usar o conhecimento de forma que o mundo se torne um lugar de felicidade.

A chave para o primeiro mundo é a linguagem da ciência.

A chave para o segundo mundo é a linguagem da poesia.

Essa é uma lição que nos ensinou a psicanálise, embora os poetas e místicos já a soubessem por milênios. O primeiro olho de Angelus Silesius corresponde ao Consciente de Freud. Ali se fala a linguagem das idéias clara e distintas, do saber e do poder.


O segundo olhos de Angelus Silesius corresponde ao Inconsciente de Freud. O Inconsciente não entende a linguagem do Consciente. No Inconsciente se fala a linguagem da poesia, das imagens, das metáforas, das metonímias, do humor, do amor. O Inconsciente é um artista.


É tarefa da educação abrir o primeiro olho. Mas os conhecimentos que moram no primeiro olho, necessários para o poder, não nos dão sabedoria. O sonho dos cientistas do passado de que o conhecimento científico tornaria os seres humanos melhores não se realizou. No momento em que escrevo acontece a guerra no Iraque. Ela é um assombro de ciência e tecnologia. E, ao mesmo tempo, um assombro de estupidez e insensibilidade. A ciência não nos torna sábios.

Daí a necessidade de se abrir o segundo olho. O segundo olho nos leva à alma dos seres humanos onde estão adormecidos os sonhos de beleza e bondade. E, como na estória de Aladim, a porta só se abre quando a palavra certa é pronunciada. “Trouxeste a chave?” A chave é a poesia. A poesia é a palavra que fala a mesma linguagem do nosso corpo. O Verbo se faz carne: o corpo é a poesia encarnada.

Diz uma antiqüíssima tradição que a Virgem Bendita foi engravidada pelo ouvido. Ah! Que linda metáfora para sugerir as relações eróticas entre carne e poesia! Mas não é precisamente isso que é feitiçaria, palavras que engravidam?


(...) Os poetas sempre reconheceram que poesia e magia são irmãs gêmeas. A secreta esperança de todo poeta é que os seus versos realizarão de novo o milagre do nascimento virginal...


Rubem Alves, Lições de feitiçaria: meditações sobre a poesia. Edições Loyola: São Paulo, 2003, p. 11-13.









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