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Tiana e Naveen em "A princesa e o sapo", Disney. |
Era uma vez um lindo
príncipe por quem todas as moças se apaixonavam. Por ele também se apaixonou
uma bruxa horrenda que o pediu em casamento. O príncipe nem ligou e a bruxa
ficou muito brava. “Se não casar comigo não vai se casar com ninguém mais!”
Olhou fundo nos olhos dele e disse: “Você vai virar um sapo!” Ao ouvir esta
palavra o príncipe sentiu uma estremeção. Teve medo. Acreditou. E ele virou
aquilo que a palavra de feitiço tinha dito. Sapo.
Virou um sapo.
Bastou que virasse sapo
para que se esquecesse de que era príncipe. Viu-se refletido no espelho real e
se espantou: “Sou um sapo. Que é que estou fazendo no palácio do príncipe? Casa
de sapo é charco”. E com essas palavras pôs-se a pular na direção do charco.
Sentiu-se feliz ao ver lama. Pulou e mergulhou. Finalmente de novo em casa.
Como era sapo, entrou
na escola de sapos para aprender as coisas próprias de sapo. Aprendeu a coaxar
com voz grossa. Aprendeu a jogar a língua pra fora para apanhar moscas
distraídas. Aprendeu a gostar do lodo. Aprendeu que as sapas eram as mais
lindas criaturas do universo. Foi aluno bom e aplicado. Memória excelente. Não
se esquecia de nada. Daí suas notas boas. Até foi o primeiro colocado nos
exames finais, o que provocou a admiração de todos os outros sapos, seus
colegas, aparecendo até nos jornais. Quanto mais aprendia as coisas de sapo mais sapo ficava. E
quanto mais aprendia a ser sapo, mais se esquecia de que um dia fora príncipe.
A aprendizagem é assim: para se aprender de um lado há de se esquecer do outro.
Toda aprendizagem produz o esquecimento.
O príncipe ficou
enfeitiçado. Mas feitiço - assim nos ensinaram na escola - é coisa que não
existe. Só acontece nas estórias de carochinha.
Engano. Feitiço acontece
sim. A estória diz a verdade.
Feitiço o que é?
Feitiço é quando uma palavra entra no corpo e transforma. O príncipe ficou
possuído pela palavra que a bruxa falou. Seu corpo ficou igual à palavra.
A estória do príncipe
que virou sapo é a nossa própria estória. Desde que nascemos, continuamente,
palavras nos vão sendo ditas. Elas entram no nosso corpo, e ele vai se
transformando. Virando uma outra coisa, diferente da que era. Educação é isso: o processo pelo qual
os nossos corpos vão ficando iguais às palavras que nos ensinam. Eu não sou eu:
eu sou as palavras que os outros plantaram em mim. Como o disse Fernando
Pessoa: “Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros
fizeram de mim”. Meu corpo é resultado de um enorme feitiço. E
os feiticeiros foram muitos: pais, mães, professores, padres, pastores, gurus,
líderes, políticos, livros, tv. Meu corpo é um corpo enfeitiçado: porque o meu
corpo aprendeu as palavras que lhe foram ditas, ele se esqueceu de outras que,
agora permanecem mal... ditas...
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Mama Odie em "A princesa e o sapo", Disney. |
A psicanálise
acredita nisso. Ela vê cada corpo como um sapo dentro do qual está um príncipe
esquecido. Seu não é ensinar nada. Seu objetivo é o contrário: des-ensinar ao
sapo sua realidade sapal. Fazê-lo esquecer-se do que aprendeu, para que ele possa lembrar-se do que
esqueceu. Quebrar o feitiço. Coisa que até mesmo certos filósofos (poucos)
percebem. A maioria se dedica ao refinamento da realidade sapal.
Também os sapos se dedicam à filosofia... Mas Wittgenstein, filósofo para
ninguém botar defeito, definia a filosofia como uma “luta contra o feitiço” que
certas palavras exercem sobre nós. Acho que ele acreditava nas estórias de
carochinha....
Tudo isso apenas como
introdução à enigmática observação com que Barthes encerra sua descrição das
metamorfoses do educador. Confissão sobre o lugar onde havia chegado, no
momento de velhice. “Há uma idade em que se
ensina aquilo que se sabe. Vem, em seguida, uma outra, quando se ensina aquilo
que não se sabe. Vem agora, talvez, a idade de uma outra experiência: aquela de
desaprender. Deixo-me, então, ser possuído pela força de toda vida viva: o
esquecimento...”
Esquecer para lembrar.
A psicanálise nenhum interesse tem por aquilo que se sabe. O sabido, lembrado,
aprendido, é a realidade sapal, o feitiço que precisa ser quebrado. Imagino que
o sapo, vez por outra, se esquecia da letra do coaxar, e no vazio do esquecimento,
surgia uma canção. “Desafinou!” berrava os maestros. “Esqueceu-se da lição”,
repreendiam os professores. Mas uma jovem que se assentava à beira da lagoa
juntava-se a ele, num dueto... E o sapo, assentado na lama, desconfiava...
“Procuro despir-me do que aprendi”, dizia Alberto Caeiro. “Procuro
esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me
pintaram os sentidos, desencaixotar minhas emoções verdadeiras,
desembrulhar-me, e ser eu...”
Assim se comportavam os
mestres Zen, que nada tinham para ensinar. Apenas ficavam à espreita, esperando
o momento de desarticular o aprendido para, através de suas rachaduras, fazer
emergir o esquecido. É preciso esquecer para
se lembrar. A sabedoria mora no esquecimento.
Acho que o sapo, tão
bom aluno, tão bem educado, passava por períodos de depressão. Uma tristeza
inexplicável, pois a vida era tão boa, tudo tão certo: a água da lagoa, as
moscas distraídas, a sinfonia unânime da saparia, todos de acordo... O sapo não
entendia. Não sabia que sua tristeza nada mais era que uma indefinível saudade
de uma beleza que esquecera. Procurava que procurava, no meio dos sapos, a cura
para sua dor. Inutilmente. Ela estava em outro lugar.
Mas um dia veio o beijo
de amor - e ele se lembrou. O feitiço foi quebrado.
Uma bela imagem para um
mestre! Uma bela imagem para educador: fazer esquecer para fazer lembrar!
RUBEM ALVES, O sapo.
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