28 de abril de 2017

A luz irresistível da verdade.




Para se preservar das más influências, a primeira condição seria, pois, evitar que a imaginação se exalte. Todos os exaltados são mais ou menos loucos, e sempre é fácil dominar um louco, tomando-o pela sua loucura. Ponde-vos, pois, acima dos temores pueris e desejos vagos; crede na sabedoria suprema e ficai convencido de que esta sabedoria, tendo-vos dado a inteligência para único meio de a conhecer, não pode querer armar laços à vossa inteligência ou razão. Vedes em toda parte, ao redor de vós, efeitos proporcionados às causas; vedes as causas dirigidas e modificadas no domínio do homem pela inteligência; vedes, em suma, o bem ser mais forte e mais preferido que o mal: por que suporeis, no infinito, uma imensa irracionalidade, se há razão no finito? A verdade não se oculta a ninguém. Deus é visível nas suas obras, e nada pede aos seres contra as leis da natureza deles, da qual ele próprio é o autor. A fé e a confiança; tende confiança não nos homens que vos falam mal da razão, porque são loucos ou impostores, mas sim na eterna razão que é o verbo divino, esta luz verdadeira, oferecida, como o sol, à intuição de toda criatura humana que vem a este mundo.

Se acreditardes na razão absoluta e se desejais mais do que tudo a verdade e a justiça, não deveis temer ninguém, e só amareis os que são amáveis. A vossa luz natural repelirá instintivamente aos malvados, porque ela será dominada pela vossa vontade. Assim, até as substâncias venenosas que poderiam vos ser administradas não afetarão a vossa inteligência. Poderão tornar-vos doente, mas nunca vos farão ficar criminoso.



LÉVI, Éliphas. Dogma e ritual de alta magia. Tradução de Rosabis Camaysar. 7ª ed. São Paulo: Editora Pensamento, 2013. p. 379.



2 de fevereiro de 2017

O Insondável.






A cabeça do ancião supremo é um recipiente inviolável, em que a sabedoria repousa como um vinho envelhecido.

Esta sabedoria é impenetrável; auto suficiente em silêncio, dentro da eternidade; e não é alterada pelas vicissitudes do tempo.

Ela é a luz, porém a cabeça negra é a lâmpada. O azeite da inteligência lhe é medido e sua claridade se manifesta por trinta e duas vias.

O Deus revelado é o Deus velado. Essa sombra humana de Deus é como o misterioso Éden, de onde surgia um misterioso manancial que alimentava quatro rios.

Nada surge de Deus. Sua substância não se esparge. Nada sai d’Ele, nada o penetra, pois é impenetrável e imutável. Tudo o que começa, tudo o que aparece, tudo o que se divide, tudo o que flui e passa, começa, aparece, se divide e passa em sua sombra. Porém Ele é imutável em sua luz e permanece como o vinho velho, que não se agita nunca e repousa em seu tonel.



Schimeon Ben-Jochai, Capítulo VI do Idra-Sutra. In: LEVI, Eliphas. As origens da Cabala. Tradução de Márcio Pugliesi e Norberto de Paula Lima. São Paulo: Pensamento,  [2005?], p. 18.





25 de janeiro de 2017

O ritmo.



O Sr. Shih tinha dois filhos: um gostava de estudar e o outro, de guerrear. O primeiro expôs seus ensinamentos morais diante da corte admirada de Ch’in e foi nomeado tutor, enquanto o segundo falou de estratégia na corte belicosa de Ch’u e foi nomeado general.

O paupérrimo Sr. Meng, ouvindo falar de tais proezas, mandou seus dois filhos seguirem o exemplo dos filhos de Shih. O primeiro expôs seus ensinamentos morais na corte de Ch’in, mas o rei de Ch’in disse: “No momento, os estados estão discutindo violentamente e todos os príncipes estão ocupados armando suas tropas até os dentes. Se eu der ouvidos ao palavratório deste moralista, em breve estaremos arrasados.” E mandou castrar o sujeito.

Enquanto isso, o segundo irmão exibia o seu gênio militar na corte de Wei. Mas o rei de Wei disse: “O meu estado é fraco. Se eu confiar na força em vez da diplomacia, em breve estaremos arrasados. Se, por outro lado, eu deixar este provocador solto, ele irá oferecer seus serviços a outro estado e aí é que estaremos em dificuldades.” E mandou cortar fora os pés do sujeito.

Ambas as famílias fizeram exatamente a mesma coisa, uma no momento certo, mas a outra na hora errada. Portanto, o sucesso não depende de lógica, mas de ritmo.

Lieh Tzu


18 de janeiro de 2017

Um levante pela civilidade.





Em seu discurso, Camila Paglia enfatiza a mensagem da proteção versus responsabilidade. O feminismo é um movimento com muitas correntes de pensamento e, realmente, há um séquito que preconiza a vitimização. Querem a liberdade de se manifestarem sexualmente com atitudes arriscadas, mas não levantam um dedo para emplacar a sua própria proteção.




Sinaliza que devemos nos defender como fazem os homens. É um ponto chave e ao mesmo tempo contraditório. Porque a nossa cultura não nos provê essa inclinação. Uma mulher que arvora-se no direito de travar uma batalha, ainda que inegavelmente justa, não é bem quista nas rodinhas dos hipócritas . O feminino deve ser vinculado à frivolidade e a uma conduta passiva.


Eu entendo por feminismo de guerra o que ela denomina de o 'feminismo das ruas' como contraponto ao dito feminismo burguês que demanda pela proteção institucional e por assistência moral. A meu ver, uma coisa não exclui a outra.


A proteção institucional não deve falhar, pois envolver-se em situações ofensivas e gravosas é sempre um risco presente em algum momento da vida. Não apenas em relação ao que Paglia identifica por psicóticos, isso parece simplório. Violações de direitos humanos são praticadas por pessoas aparentemente normais e de bom conceito social.


Vivemos numa cultura de violência, mas compreender a atitude de uma mulher a arrancar uma cadeira com a intenção flagrante de atirá-la contra a cabeça de um homem é algo desprezível. No entanto, o inverso não tem causado o espanto esperado e há quem ache alguma graça nesta situação miserável. São inúmeras as situações análogas a essa acontecendo por aí todos os dias.


A violência deflagrada contra a mulher é ainda vista como algo tolerável, precisa-se admitir. Mas é espantoso quando uma mulher convida sua irmandade a levantar os açoites e os punhos para fazer uma horda de homens debandarem em disparada. Sim, porque a ideia do feminismo de luta é essa. E aí?


Não é a incursão da violência a tônica desse texto. Mas sim, o conclame a uma postura impositiva para o respeito quando este não ocorrer naturalmente. Aqui vale a ingerência dos que se propõem a educar crianças e jovens ou a militar a respeito do tema. Criar verdadeiras condições para que a civilidade não seja vivida como uma circunstância deslocada da rotina.


Que a civilidade entre as pessoas seja a palavra do dia e seja servido um cálice realmente amargo aos agressores. Toda pessoa deve criar para si mesmo um sistema de autoproteção com a inclusão de modificações no seu modo de estar no mundo. É claro que estas considerações extrapolam a ambientação do discurso feminista para alcançar a generalidade das situações de conflito por assédio e outras manifestações agressivas entre as pessoas.





28 de dezembro de 2016

Serenidade.



Para servir aos homens e a Tao,
Nada melhor do que a serenidade.
Serenidade é agir sem agir,
Atividade pelo próprio Ser,
Serenidade é silenciosa superioridade.
Serenidade é passividade dinâmica,
Que atua de dentro para fora.
Tao é infinita potência,
Porque é silêncio Criador.


LAO-TSÉ. Tao te ching: o livro que revela Deus. Texto integral. 4ª ed. Tradução e notas: Huberto Rohden. São Paulo: Martin Claret, 2011, p. 143, poema 59.









26 de dezembro de 2016

Dos ares da mudança.






É chegado o momento da mudança. Podemos senti-lo de algum modo, como um leve formigamento de esperanças já ao pé do ventre. Expectativas gerais. Turbilhão confusos de inverdades já esporadicamente lançadas a esmo. Maldades latentes que se deflagram de pessoas contra pessoas.


Em tudo o que se vê ou ouve, é necessário auscultar em si mesmo. Aquela voz sutil que ascende ao pensamento desprovida das exigências egocêntricas do rancor e da discórdia. A maldade ainda é uma questão de escolha. O mal é uma postura consciente e ardilosa.


Agradeço às esferas que me erguem como Sarça viva para mais um novo tempo de aprendizado. Agradeço a tudo que aprendi, já obteve seus efeitos e reclama ser superado. Agradeço ao tempo que me permite experimentar humanidade, com toda a sorte de emoções que a ela se vincula e anima.


Diz o mestre, "Tudo o que é sensível sofre". E, desse modo, é mais que oportuno que eu venha também agradecer a meus contendores, sem qualquer exceção, por proporcionar-me circunstâncias de desenvolvimento.




Enquanto estamos sendo atacados, sentimo-nos à mercê das correntezas, atirados contra qualquer direção, engolindo raízes e dejetos pelo caminho.


Hoje, há algo de diferente, que não se transfere e nem se permite apreender aos desavisados. Um domínio interior que sabe esperar o momento de tudo. Nada além do 'orare et laborare' promulgado por Calvino. Tudo simples e exequível.




Aos desafetos à espreita, aqui não levantaremos um dedo contra quem quer que seja. Por três razões muito óbvias. A primeira, porque todo compromisso é íntimo. A segunda, porque cada um só oferece o que possui. Por último, ninguém precisa auxiliar tolos a se destruírem, porque alegremente eles cantam ao atirar-se no abismo. Aos que dormem, bons sonhos!






A Serpente Solar




A luz se esquiva no horizonte permitindo à sombra celeste alargar-se sobre a terra. As visões de um passado ermo avançam como corsas em disparada. Ouve-se o trepidar rasgando o silêncio na noite túrgida.


Desperta a chama solar como asas de condor. Irrompeu do caldo plúmbeo feito broto incandescente. Coroada a Serpente inflamada, curvou-se o Cálice de Eva.




A fragilidade no poder.




Uma autoridade que necessita reclamar apreço e crédito perante os seus assim considerados submissos, se ainda é autoridade, o é sob parâmetros bastante frágeis. Uma autoridade que precisa lembrar a cada oportunidade que se lhe apresente acerca da própria importância e que, com a mesma inclinação, expõe argumentos cujos efeitos, longe de afinar os demais às suas opiniões, apenas os ganha por bajulação, irreflexão ou receio, é uma autoridade escamoteada.




3 de novembro de 2016

Os sonhos de Calete.




Distraída, Calete desenha no ar símbolos aleatórios. Movimentava o braço  com o indicador erguido sem se incomodar com quem transitava pelas ruas. Parecia estar muito cedo para tratar de responsabilidades. Parecia ter deixado todas as atividades por fazer, ou se permitia antever que tudo seria feito em momento oportuno para ela.


Era isso, então, o momento todo para ela! Não haveria a possibilidade de ajustá-lo a nenhuma outra lembrança, nada, nenhuma atividade, apenas Calete e seus desenhos no ar com movimentos soltos e giratórios. Letras? Números? Eram borboletas invisíveis agitadoras de asas sob um sol que extasiava acima de seus cachos? Andorinhas pousavam num jardim intumescido de flores?


Saltitava nas pontas dos pés e parecia equilibrar-se com o auxílio das cordas invisíveis de algum Saltimbanco, senhor de marionetes. Sob qual música dançava? Ninguém escutava a melodia dos sonhos de Calete, entretanto se os murmúrios do vento pudessem ser compreendidos dissertariam sobre os enlevos coloridos que formigavam os pequenos pés, fazendo-os tamborilar pelas calçadas.


O vestidinho drapeado de um vermelho encarnado lhe dava um aspecto de rosa em botão. Quantas expectativas poder-se-ão nutrir com rabiscos e chuva de bolinhas? Quantas lições de amor a penitenciarão pela estrada de ladrilhos dourados como a aurora? Quantas pedrinhas haverão de ser depositadas na sacolinha de futilidades aparentemente inúteis?


De uma concha cava-se a terra e são necessárias duas mãos para erguer uma ponte. Por essa ponte, palitinhos são espetados aqui e acolá e, de brotinho em brotinho, uma floresta é erguida ao fundo. Buziosinhos redondos, cuidadosamente enfileirados, trafegam por estradas escavadas com pedaços de telhas. E pinhos secos fixados em montinhos de areia viram casebres de dormir para moradores imaginários.


Calete, onde guardarás os teus sonhos de candura? Nas pontas dos dedos que agora levitam no ar? Farás das nuvens um repouso tranquilo para os teus desejos?






26 de outubro de 2016

O sorriso de Luíza.





Circulava pelas ruas da cidade a empurrar a carrocinha. Roupa colorida, estampava flores miúdas no corpo largo. Não negava o sorriso a quem lhe cumprimentasse. E seguia recolhendo o que as famílias por consumo descartavam no lixo.


Os olhos seletivos miravam longe. As mãos ágeis retiravam dos sacos depositados pela calçada toda a sorte de garrafas que atirava distraidamente para o interior do carrinho. Seu nome, Luíza. A vida parecia luzir quando Luíza passava com a sua carrocinha a ranger sem pressa.


Com o dia ensolarado e quente, desde cedo, não é de espantar que Luíza fosse mulher de erguer-se às cinco da matina. Ajeitava-se numa cadeirinha de nylon trançado onde se punha em estado de oração de salmos. Folheava as paginazinhas amareladas de um pequeno exemplar do livro sagrado com a delicadeza das pontas dos dedos para escolher o poema do dia.


Pedia pelos filhos já espalhados no mundo. Todo mundo longe, bateram asas. Pedia pelos filhos dos filhos, meninada saudável e agitada. Contava já um bisnetinho, da neta mais velha, a de vinte e três anos. Terminava o curso de enfermagem e prometia casamento com um rapaz de bem, também trabalhador. Pedia por essa, pela família que se anunciava...


Erguia-se prazerosa de agradecimentos por mais um dia de lida. Preparava o café, cujo aroma espalhava rapidamente por toda a casa de apenas três cômodos. O cheiro já escapava pela área dos fundos. Sorvia a bebida com paciência. Mas o dia sempre esticava rápido e, quando menos se espera, a hora alta reclama pressa.


Varria a área. Recolhia as folhas secas da goiabeira. Alimentava os passarinhos engaiolados embaixo da cobertura. Encharcava os panos na lavanderia, torcia-os com o peso do corpo e já se encaminhava para o varal para estendê-los. Enxugava os braços na barra da saia e se punha a sorver outro menorzinho, dessa vez acompanhado de bolachas de goma.



A carrocinha esperava atada ao muro do lado de fora. Dormia assim mesmo, ao relento. Ninguém mexia. Todo mundo conhecido. “Tudo gente da gente”, dizia. Rumava para as ruas do centro com a sua carrocinha. E o dia quente se alargava junto ao sorriso largo e generoso de Luíza.